22.4.02

Morte e vida palestina

(publicada no JB)

Moradores de Ramala aprendem a conviver com tanques, medo e tédio

Ovos. A maior preocupação do senhor Jumah naquela tarde era a dúzia de ovos que ele levava com cuidado entre os escombros de prédios que agora complicam o trajeto da casa de sua mãe à sua própria. De repente, o senhor de 50 anos estanca, de frente para dois tanques igualmente imóveis. É de novo uma criança com medo e uma dúzia de frágeis ovos, um tesouro nas atuais circunstâncias, nas mãos: ''eles me mandaram voltar. Voltar pra onde?'', exclama, afinando a voz.

Jumah, que mora em Betúnia, uma das localidades que compõem a Grande Ramala, não dá o primeiro nome. Assim como ele, uma multidão anônima, em torno de 150 mil pessoas, vive há mais de três semanas sob bloqueio militar israelense, entre cinzeiros cheios, o aparelho de TV, os cantos das janelas, livros lidos sem muito interesse e uma mistura desagradável de medo e tédio.

''É quase a mesma coisa que uma prisão, só que na sua casa. Você perde o senso de tempo, esquece em que dia está e só olha para o relógio quando sabe que está chegando a hora de suspenderem o toque de recolher'', conta o estudante de engenharia Badawi Qawasmi. ''Nos primeiros dias, ficávamos assistindo os tanques, vendo se os soldados iam parar na frente de casa para nos pegar. Além disso, víamos muita TV e ouvíamos rádio - se bem que depois de uns dias as estações foram saindo do ar. Quando acabava a luz, jogávamos cartas. Depois de dez dias já não agüentava mais nada disso''.

Foi aí que Badawi e os irmãos começaram a tirar os livros da prateleira. Primeiro, para adiantarem as leituras da faculdade ou os deveres do colégio. Depois, para se desligarem da realidade. ''Peguei meus livros do curso de francês e estou pelejando para ler. Chateaubriand, Baudelaire, o que tiver''.

Um dos poucos acontecimentos a quebrar a modorra é quando os soldados anunciam através de megafones o levantamento do bloqueio, geralmente entre uma e quatro da tarde. É hora de correr para comprar farinha, água, legumes, remédios. O pão sai só às vezes, mas sempre fresco, porque o padeiro é liberado antes de todos para esquentar o forno, abrir a massa e preparar as bandejas.

Uns aproveitam para alimentar o espírito. ''Sexta-feira consegui ir à mesquita'', conta o senhor Jumah. ''A daqui é uma das poucas onde ainda há xeques para dar sermões. Muitos foram mortos ou presos – a maioria é do Hamas. Estão tendo cuidado com os discursos. Os soldados podem estar ouvindo''. Outros são mais mundanos. Hasan, filho de Jumah, por exemplo, foi para um ciber-café próximo ler os jornais e mandar e-mails para os amigos e para a namorada que ele tem visto pouco, por razões óbvias.

Depois de 21 dias, o dinheiro para pagar tudo virou problema. Quem tem salário mensal ajuda os diaristas e os que vivem de semanada. Os que têm poupança já se preocupam e os que não têm apelam para as agências humanitárias que circulam pela cidade levando cestas básicas com farinha, leite em pó e frangos. Segundo Jumah, quem tem dinheiro divide, quem paga aluguel está perdoado e quem precisa de remédio pede.

As poucas horas na rua não chegam a ser calmas. Os soldados estão em todo lugar e os tanques já tem uma linguagem própria. A torre vai da esquerda para a direita. É um ''não''; o canhão para cima e para baixo é um ''sim''. Na dúvida, uma mão sai de dentro da escotilha e acena um gesto meio ininteligível. No último estágio, os soldados dentro da máquina falam pelo alto-falante algo em árabe ou hebraico.

A tensão chega ao pico no início e no fim do período de liberdade. Diversas pessoas já foram baleadas por ainda estarem na rua durante o toque de recolher. Ontem um adolescente de 15 anos foi morto por pôr os pés na rua três minutos antes do permitido, segundo Badawi. A confusão é maior porque os horários são estabelecidos pelo fuso israelense, uma hora mais tarde que o da Autoridade Palestina. No fim da tarde, as pessoas voltam para casa carregando sacolas e contando as novas. Então segue-se mais horas de tédio, ar contaminado e falta de sono.

''Pode me ligar mais tarde'', diz Badawi, pouco antes de se despedir, depois de quase uma hora de entrevista e alguns minutos antes da meia-noite palestina. ''A gente dorme a qualquer hora, pode me acordar''.