24.7.02

''Sei que vou ser criticado''

Sérgio Vieira de Mello fala dos desafios que o esperam como alto comissário para Direitos Humanos

(Publicada originalmente no JB)

Confirmado ontem pela Assembléia Geral da ONU como o novo Alto Comissário para Direitos Humanos da organização, o brasileiro Sérgio Vieira de Mello ainda aborda com cautela a missão que tem à frente. Sabe, contudo, que o cargo que ocupará a partir de setembro é um dos mais espinhosos das Nações Unidas. Vieira de Mello, que dirigiu a missão da ONU no Timor Leste, conversou por telefone com o Jornal do Brasil, de sua casa, em Nova York.
- Qual a sensação de ser incumbido de uma tarefa como essa?
- É semelhante ao que senti quando cheguei a Timor Leste. Agora começo a me dar conta da extensão, do desafio e da responsabilidade que levarei nos ombros a partir do dia 12 de setembro. Tenho plena noção da dificuldade inerente a meu posto e da multidão de problemas concretos, teóricos e práticos, com os quais vou me defrontar. As próximas semanas serão, sem dúvida, de aprendizado.
- Quais são as maiores questões relativas aos direitos humanos hoje?
- É difícil ser específico agora. Direitos humanos é quase tudo. Respirar é um direito humano, direito à vida. Mas há o perigo da diluição, da dispersão. Uma das minhas principais tarefas será priorizar. Identificar as áreas que devem ser abordadas primeiro. Não se deve dar atenção apenas à promoção da teoria dos direitos humanos, mas também às situações em que os direitos se encontram ameaçados ou cerceados. Se for me pautar pelas emergências políticas ou humanitárias, posso estar negligenciando outros aspectos. Não quero fazer isso antes de pedir conselhos a minha colega Mary Robinson.
- Robinson deixa o cargo com boa reputação entre defensores dos direitos humanos, mas criticada por vários governos. O que o senhor acha que mudará com sua entrada?
- O que muda são as personalidades. Cada um tem seu estilo, seu enfoque. O meu não será idêntico ao dela, mas certamente vou me beneficiar de tudo que ela realizou. Mas meu cargo tem muito daquilo que os ingleses chamam de no win situation. Não se pode agradar a todos. O que vou tentar fazer, e não digo que vou ter mais êxito que Robinson, é complementar o trabalho do secretário-geral Kofi Annan. Quero evitar também a hiperpolitização de alguns temas de direitos humanos e encontrar áreas de consenso. Sei que vou ser criticado por uma ou outra parte. Isso é parte do meu cargo por definição.
- O senhor tem idéia de quais seriam os pontos de tensão?
- Seria precipitado mencioná-los agora. Minhas prioridades serão conhecidas na prática, não necessariamente em declarações públicas.
- Há alguma mudança no contexto de sua atividade após os atentados de 11 de setembro?
- Os atentados são um divisor de águas. Os métodos usados pelos terroristas ultrapassaram tudo o que podíamos imaginar. Mas também o combate a estas novas formas de terrorismo cria um desafio para a promoção dos direitos humanos. É preciso criar salvaguardas. A promoção desses direitos deve ser feita de forma a tornar impossível o recurso a atos insensatos como aqueles.
- O senhor acredita que, com sua nomeação, haverá mais dedicação do Brasil à proteção dos direitos humanos?
- O Brasil desenvolveu na última década uma nova consciência, importantíssima, sobre o assunto. Sabemos, contudo, da dificuldade de transformar a teoria em prática num país tão grande e jovem como o nosso. Como alto comissário, não posso tratar de um país em particular, muito menos o meu. Mas é óbvio que, por ser brasileiro, desenvolveremos um diálogo com Brasília. Espero que me apóiem com idéias e sugestões. E também que me ouçam quando for preciso expressar algum ponto de vista ou alguma preocupação. Sei que o Itamaraty estará aberto a isso.
- Finalmente, qual seu balanço da transição para a independência que o senhor comandou em Timor Leste?
- Foram dois anos e meio excepcionais no sentido original da palavra: fora do comum. Timor foi diferente de tudo que a ONU já fez. Encontramos um país em ruínas e o deixamos com novas instituições. Instituições ainda frágeis, mas o país é seguro, estável e, principalmente, tem consciência de sua própria responsabilidade de levar adiante e consolidar o que se construiu até aqui. Entregando as chaves de meu gabinete ao presidente Xanana Gusmão, não houve um corte, mas continuidade. Tudo que conseguimos foi fruto do trabalho conjunto com os timorenses, seguindo sempre o que eles quiseram, o que é mais importante.