18.5.04

Jihad

(uma versão dessa matéria foi publicada no Idéias)

Jihad
De Gilles Kepel
Bibliex
576 pgs

Onde quer que se esconda no momento, Osama bin Laden deve estar satisfeito. Vendo os noticiários internacionais, provavelmente sorri ao assistir a Casa Branca correndo atrás das redes de televisão árabes para lamentar ou pedir desculpas pelos abusos cometidos por soldados americanos na prisão iraquiana de Abu Ghraib.

Contente, sim. Mas surpreso, a se crer no profético Jihad, do francês Gilles Kepel, não.

Uma das principais teses defendidas por Kepel em seu livro é que toda a atual estratégia do saudita desde os ataques de 11 de setembro se baseia no trinômio provocação-repressão-solidariedade. De forma mais alongada, o autor classifica os ataques a Nova York e Washington como uma grande provocação, feita sobre medida para gerar uma reação repressiva por parte dos Estados Unidos. E os chamados “danos colateriais” – os civis agredidos, as crianças aleijadas por bombardeios, os presos em Abu Ghraib – se incumbem de granjear a solidariedade de boa parte do mundo. Como se vê, já estava tudo escrito no livro de Kepel, lançado originalmente na França em 2000, antes dos ataques, portanto.

A tese, que é tão questionada quanto atentamente ouvida por quem estuda o Oriente Médio, demonstraria que o homem que passou mais da metade de sua vida em barracas de campanha é dotado de um sofisticado pensamento estratégico. É como se, sentado em alguma localidade poeirenta do Afeganistão, quatro anos atrás, Bin Laden tivesse em suas mãos calhamaços de pesquisas de opinião onde o antiamericanismo batia índices altíssimos e crescentes. Como se houvesse lido cada relatório reservado da diplomacia européia e mundial falando da petulância e unilateralismo do então novo presidente americano, George Bush. Como, também, Bin Laden dominasse tranquilamente toda a teoria de mídia produzida pelos pensantes ocidentais no século passado – de Goebbels a Chomsky, de Adorno a Guy Debord, passando por Stalin, Mandela e Gandhi – para calcular suas ações, buscando o maior impacto possível. Pode-se chegar a dizer que Bin Laden escolheu a mídia como campo de batalha preferencial ao planejar seu ataque ao “império”.

As razões fazem parte de uma outra história, essa ainda mais polêmica: Kepel interpreta os ataques aos Estados Unidos como um desesperado gesto para unir o mundo muçulmano, hoje uma legião heterogênea de um bilhão de fiéis, maior que a do cristianismo, em torno de um ideal.

Que ideal seria esse? A resposta de Kepel é que Bin Laden quer chegar ao poder ou, ao menos, ver elementos alinhados à sua filosofia chegarem ao poder. Na prática, isso não parece sequer próximo de acontecer. No chamado “mundo muçulmano”, há apenas três situações em que parece haver mudanças políticas no núcleo do poder a vista: duas delas, Afeganistão e Iraque, por obra e graça da invasão americana; na terceira, no Irã, há sinais continuados de que, se a mudança acontecer, os vitoriosos serão os moderados e os seculares, não os radicais.

Olhando pelos prismas oferecidos por Kepel, não é difícil ver porquê o espatifar gigantesco dos aviões contra as Torres Gêmeas não se traduziu até agora na tomada do poder. Embora angarie toneladas de solidariedade mesmo dos não-muçulmanos, o saudita se afastou perigosamente das bases do movimento islâmico. Ao contrário do que aconteceu no Irã pré-revolução islâmica, Bin Laden nunca conseguiu construir uma base ativista ampla. Quer por seu radicalismo, quer pela oferta/ameaça do martírio, a Al Qaeda tem poder reduzido para atrair a juventude pobre e sem perspectivas das cidades, os comerciantes pios dispostos a financiar a causa ou mesmo a classe média de convicções quase seculares, setores que garantiram, por exemplo, a subida do aiatolá Khomeini ao poder.

A revolução iraniana, aliás, é o único caso de sucesso dos movimentos radicais islâmicos lembrado por Kepel. Os fracassos, por outro lado, são muitos. No Egito, a Irmandade Muçulmana, que no início dos anos 80 parecia destinada a dar as cartas no Norte da África, errou ao radicalizar seu discurso e ações, isolando elementos mais moderados que poderiam ao menos ser úteis. No Paquistão, os radicais se incrustaram nos altos escalões do governo. Foram os principais incentivadores dos talibãs afegãos, assim como os EUA, em certa época. Mas bastou serem forçados a uma decisão – logo após os ataques de 2001, quando Bush declarou que quem não estava com a América estava contra – para o moderado general-presidente-primeiro-ministro Pervez Musharraf ganhar a disputa.

É um giro de argumentação ambicioso, o que Kepel propõe. Professor do Instituto de Estudos Políticos de Paris, parece ter as credenciais para ter essa audácia. Desde seu primeiro trabalho, Les Prophetes et Pharaon, sobre os extremistas egípcios, o islamismo é seu foco. Graças a sua fluência em árabe – algo menos costumeiro entre os que estudam a região do que se pode supor – pode contar com a colaboração de mais de uma dezena de centros de estudos políticos no Oriente e citar centenas de periódicos árabes obscuros em seus trabalhos.

Jihad, além de uma ampla, bem escrita e fartamente documentada história do extremismo islâmico nas últimas três décadas, relê o homem mais temido do mundo hoje como o representante de uma corrente política no fim de suas forças, disposto a gestos desesperados para relançar sua causa. Adicionalmente, retrata o mundo muçulmano atual não como um emaranhado pétreo de ditaduras, mas uma peneira cada vez menos eficiente em tampar o sol de mudanças democráticas ainda a germinar, mas já plantadas. São visões inusitadas sobre a região que monopoliza as atenções do mundo há três anos, que Kepel esgrima com segurança e serenidade incomuns.