7.3.05

Entre quilombos e foguetes



Alcântara, no Maranhão, ficou pequena demais para os descendentes de escravos e o Programa Nacional de Atividades Espaciais

(Uma versão editada dessa reportagem foi publicada no JB)

Raimundo Vieira não é quilombola apenas por herança e sangue, mas também por escolha. Cinco anos atrás, juntou uns poucos pertences numa sacola, deixou o Maranhão em direção ao Rio de Janeiro. Trabalhou por algum tempo – um ano, dois anos, não tem conta certa – fazendo bicos, a maioria como ajudante de pedreiro. Morava na Vila do João. Ouviu funk, pegou algumas gírias locais, mas não agüentou: voltou para Samucangáua, um dos quilombos vizinhos do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA), a poucas dezenas de quilômetros da capital do Maranhão, São Luis.

“Não dá pra ficar vivendo sem controle da vida. Isso não faço. Na Vila do João você obedece a quem manda ou se manda, como eu fiz”, explica, sorrindo da frase bem talhada. Mas o que Raimundo não sabia é que, ao voltar para a terra onde seus antepassados fundaram um quilombo há mais de um século e meio, estaria encontrando outra confusão.

Alcântara parece pequena demais para abrigar o centro de lançamento e as terras de quilombo. De acordo com o Programa Nacional de Atividades Espaciais do governo, até o fim de 2007 deve ser completada mais uma expansão do CLA para receber novas instalações e começar a fazer lançamentos comerciais. E essa expansão pressupõe a retirada de quase 400 famílias de seus territórios originais, que hoje já se encontram dentro da área da base. Mas grande parte do problema não é a simples disputa por terra – é principalmente a luta por permanecer perto do mar.

“O que a gente tem medo é que eles nos mandem para um lugar que a gente não conhece. A gente está acostumado, é nascido e criado aqui, já temos o jeito. Não estamos acostumados no mato, a viver só de roçar, e talvez eles ponham a gente longe da maré”, conta ele, comendo ostras cruas enquanto sua canoa aderna na vazante do mangue. Seu tio, que todos chamam de Zé Preto e tira peixes da rede atravessada num dos canais, completa o coro: “Se eu for pra longe do mar? Aí eu já não vou fazer nada. Vou passar fome. No dia que não tiver não como e no dia que tiver é uma mãozadinha só”.

Os temores dos que estão lotados para a possível remoção – a Agência Espacial Brasileira não dá datas nem certeza de que isso vai acontecer, embora seu presidente, Eduardo Gaudenzi, diga que ninguém sai na marra – não rodam no vazio.



Quando a base foi criada, nos anos 80, mais de 300 famílias foram retiradas sem muita conversa, indenizadas, pagas por benfeitorias e assentadas nas chamadas agrovilas. Nessas vilas encontra-se muito do que falta nos quilombos: poço artesiano, casa de alvenaria, luz, orelhão – e reclamações. Apesar do relativo conforto desses vilarejos, poucos quilombolas gostam de morar aí.

“Me lembro eu pequeno, os pescadores no igarapé e a gente em casa, eles gritavam de lá mesmo pra atiçar o fogo, os peixinhos chegavam pulando”, diz João da Silva, que vive em Espera, uma agrovila. “E hoje não, não tem mais dessa, não. A mordomia acabou. O peixe chega já podre, moído que a gente chama. Tem vez que dá pra a gente aproveitar. Tem vez que vai pro porco”, explica.

Hoje João e os quilombolas desse não-quilombo têm de se programar para passar três dias fora quando vão para o mar, senão a jornada não compensa. “É isso ou comprar do cara do gelo”, conta ele, se referindo aos homens que passam em caminhonetes vendendo peixe aos pescadores.

A indefinição causada pelo impacto da base acabou embaralhando as coisas aqui. Antigamente, receber gente para pescar na “sua praia” era uma honra. Os hóspedes sempre deixavam algum peixe para a vila ou trocavam por farinha de mandioca feita ali mesmo. Agora o dinheiro faz cada vez mais parte da equação e, com a perspectiva de mais gente sobrevivendo dos mesmos mangues e praias, um senso de posse sobre o que antes era comunal começa a se formar.

No forno de farinha instalado à esquerda da casa de Manoel de Jesus Amorim, os moradores de Itapuáua discutem o futuro enquanto alguém bate no rodo a pasta de mandioca espalhada para secar sobre um grande tacho. O tema da base assusta, embora todos estejam relativamente longe dela e a salvo de qualquer relocação. “Não é que a gente não queira que ninguém venha aqui para buscar comida. Mas eu fico preocupado quando olho pra esse mar aí em frente e penso se ele dá conta de dar peixe pra todo mundo. Eu não sei se dá, não”, diz ele.

É essa incerteza que tem caracterizado as coisas em Alcântara. Quilombolas que não moram mais em quilombos. Pescadores comprando peixe. Gente ameaçada de despejo que não sabe quando e se isso acontece. E, primeira e última das dúvidas, para quê, afinal, se manda foguetes lá pro alto de vez em quando.

“Pra trazer peixe aqui pra baixo é que não é”, diz Raimundo, rindo com seus companheiros de pesca, sem saber direito do quê.



GOVERNO TEM POUCAS RESPOSAS E MUITAS PROMESSAS

Mais um episódio da polêmica entre quilombolas e a base de Alcântara vai acontecer nos próximos dias 11 e 12, quando uma comissão inter-ministerial chega à cidade apresentar a lideranças locais os planos de desenvolvimento do centro e da região.

Desde o fim do governo Fernando Henrique Cardoso a ameaça de remoção paira sobre as cabeças de todos aqui, embora nunca tenha se definido oficialmente quando e se ela realmente vai acontecer. De acordo com o Plano Nacional de Atividades Espaciais (Pnae), documento elaborado pela Agência Espacial Nacional, uma nova leva de expansão do centro deve acontecer até 2007 e essa expansão pressupõe a remoção de povoados. Mas a agência afirma que não vai tirar ninguém de sua terra antes de conversar.

"Existindo a necessidade aqui e ali de alguma remoção, ela só será feita com conversa, com um acordo, enfim, junto à comunidade", afirma Sergio Gaudenzi, presidente da AEB. "Não posso dizer quando. Em princípio, vai haver. Depende muito das distâncias que nós vamos precisar para alguns lançamentos. Mas, se precisar, será combinada".

Em 2001, líderes comunitários se uniram e protocolaram uma denúncia contra o governo brasileiro junto à Organização dos Estados Americanos. O planalto respondeu criando – ano passado – um grupo de trabalho interministerial coordenado pela Casa Civil, incluindo pela primeira vez Secretaria Nacional de Direitos Humanos no debate.

O primeiro filhote do grupo está começando a ser propagandeado agora: a construção, do lado do terreno da base de lançamentos, também em território quilombola, de outro centro, um complexo com campus universitário, escritórios do governo, vila habitacional, hotéis, restaurantes, escolas, centro de tratamento de resíduos sólidos, sistema de água, esgoto, energia, hospital, locais para instalação de usinas de biomassa, biodiesel e, segundo se anuncia, muito mais.

O princípio agora, segundo o secretário nacional de direitos humanos, Nilmário Miranda, é trabalhar com o conceito de projetos, e não reparação econômica – tira-se uma casa, dá-se uma casa, como foi feito nas agrovilas. "Se houver um novo deslocamento, tem que ser feito em bases totalmente distintas das de antes", afirma.

O projeto já foi apresentado em Brasília ao governador do estado, José Reinaldo Tavares, e essa semana Gaudenzi parte para o Maranhão para um encontro com deputados, vereadores, comunidade científica, empresários locais e lideranças de Alcântara.

Ele crê que tal projeto será aceito de bom grado pelas comunidades. "Eu não vejo essa hipótese das pessoas dizerem 'nós não queremos nada aqui, queremos que fique como está, nós não vamos fazer coisa alguma'. Acho que dificilmente alguém pensará assim".



MOVIMENTOS COMEÇAM A ARTICULAR RESPOSTA

Ainda não se sabe os detalhes do projeto do governo, mas as principais reivindicações dos líderes do movimento quilombola passam longe de projetos faraônicos. A maioria tem a ver com educação e saúde.

Embora haja escolas mais para o interior, as aulas estão suspensas há tempos e não há transporte para as crianças.

Na questão da saúde o problema é mais grave. Verminoses são tão freqüentes quanto a gravidez precoce e a distância impede que um simples corte seja tratado adequadamente. Quase toda casa de pescador tem uma bola de sebo que, espetada num graveto e aquecida numa vela, cuida de cauterizar na marra feridas mais graves em anzóis, facas e pregos.

Os principais ativistas da região preferem não ser muito enfáticos em entrevistas. Todos optam pelo anonimato, principalmente depois do que aconteceu com a freira americana Dorothy Stang, no vizinho Pará, mês passado. E concordam que uma nova remoção é inaceitável.

"O centro de lançamento quer 62 mil hectares de terra. Isso é muito mais do que o necessário para implantar um centro de lançamento em qualquer lugar do mundo, que é cinco mil hectares", diz um ativista. "Não somos contra a tecnologia nem nada disso, mas as comunidades querem saúde, educação, moradia e não têm. Brasília fica assinando acordos com os EUA, com a Ucrânia e a gente aqui, largado".