26.11.05

O apocalipse interno de Michael Herr

(Publicado originalmente no Prosa & Verso, O Globo)

Chega ao Brasil um dos relatos formadores do que hoje chamamos de ‘guerra’ e ‘Vietnã’


Despachos do front, de Michael Herr. Tradução e apresentação de Ana Maria Bahiana. Editora Objetiva, 254 pgs. R$ 39,90

"Quando você sai à noite os paramédicos te dão pílulas, hálito de dexedrina como cobras mortas que ficaram tempo demais num vidro. Nunca senti necessidade delas, um pequeno contato ou até mesmo qualquer coisa que parecesse um contato me dava mais pique do que eu era capaz de suportar. Cada vez que eu ouvia alguma coisa além do limite do nosso pequeno círculo cerrado, eu praticamente pulava, esperando em Deus que não fosse o único que estivesse percebendo aquilo. Uns tiros na escuridão a 1 quilômetro de distância e o Elefante se instalava de joelhos no meu peito, me enterrando nas minhas botas sem conseguir respirar.”

É essa intensidade — a intensidade de coisas que não são explicadas, que se sente — o maior trunfo de “Despachos do Front”, de Michael Herr, mais um lançamento da coleção Jornalismo de Guerra que a Objetiva põe no mercado. Na verdade, o livro é tão intenso que explode essas categorias — “jornalismo” e “de guerra” — como fossem de papel. Primeiro porque o livro foi escrito depois de oito anos de metabolização dentro do autor, é um registro “a frio” que zomba do pretenso imediatismo jornalístico. E segundo porque o que está em destaque aqui não é a guerra, mas o humano, esse humano em carne viva que as guerras em qualquer latitude e época expõem.

Perversão geral, inclusive das vítimas
Foi outro autor da coleção, o americano Jon Lee Anderson (que contribuiu com o tenso “A queda de Bagdá”) quem deu, na última Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), em julho, uma versão tão amarga quanto precisa do que é a guerra. “Em situações assim, mesmo os inocentes são maus. Não podemos nos enganar: o verdadeiro poder da guerra é o de transferir sua maldade para dentro de qualquer pessoa, mesmo as vítimas”.

Raras vezes em outro período da História tantos homens tiveram a vontade, o poder e a liberdade de, como o próprio Herr descreve, “serem Deus”. Não seria exatamente por isso que Francis Ford Coppola escolheu o Vietnã como cenário de sua versão de “Coração das trevas”, de Conrad, um “Apocalypse Now” que é essencialmente interno, demasiadamente humano?

Não à toa, Herr foi chamado a colaborar com o diretor logo no início do que viria a ser o roteiro do filme clássico. O Vietnã de Herr está lá, inteiro, nos vôos de helicóptero lisos e tensos, na umidade incômoda das plantações de arroz, no horror acontecendo sem muito aviso e tratado com algum descaso apenas porque se tornou banal. E nas pessoas bestializadas pelo ambiente, mas não só por ele.

Pode-se perguntar aqui a validade de considerar esse Vietnã como sendo apenas de Herr. Ele está presente, por exemplo, em “Platoon”, de Oliver Stone, feito muitos anos depois e refém do modelo criado por Coppola com sua ajuda. Mas também está, de forma muito similar, em “Corações e mentes”, brilhante documentário de Peter Davis, que precedeu todos, inclusive o livro de Herr, em alguns anos.

É precisamente aí que o relato de “Despachos”, mesmo tendo sido escrito muito depois dos acontecimentos, se reconcilia com o fio jornalístico. Herr desceu a guerra do Olimpo, despindo-a de cores vivas e heroísmos inventados. A única guerra verossímil naqueles — e nesses — tempos de inocências perdidas. Hoje sabemos que a guerra na TV é um engodo porque aprendemos — não só com Herr, mas muito por sua influência — que as guerras são sujas, enlameadas, tristes. Que não há heróis. De quebra, o americano retratou com pincel fino aqueles anos em que um país pobre do Oriente e os EUA se cruzaram para dar à luz a aberração geopolítica, estratégica, social e comportamental chamada Vietnã.

O engenho do autor está não só no que conta, mas principalmente na forma como conta. A linguagem do livro é também um resultado dessa cruza perversora. Uma mistura de jargão militar com gíria hippie, o choque da poesia beat do rock com o analfabetismo de recrutas com saudade e raiva de casa. Todos os que estiveram lá foram expostos a essa linguagem bastarda, mas poucos, além dos jornalistas, tinham proximidade bastante para ouvi-la e a sensibilidade necessária para admirá-la.

Caminho diferente do de José Hamilton
É especialmente interessante comparar a abordagem de Herr com a de José Hamilton Ribeiro, o decano dos repórteres brasileiros, que cobriu o Vietnã para a revista “Realidade” em 1968. Seu relato, “O gosto da guerra”, republicado na mesma coleção da Objetiva, é em quase tudo oposto ao de Herr, embora ambos sejam intensamente pessoais.

José Hamilton tinha seus trinta e tantos anos quando chegou a Saigon. Estava longe de ser um hippie, ou mesmo de viver a ressaca do movimento hippie . Para o brasileiro, era fácil dizer o que era o Vietnã. O Vietnã era tudo que não era José Hamilton. E é esse distanciamento que faz seu livro funcionar: quando ainda está em vigor, o jornalista reportando o que vê; mas especialmente quando é feito em cacos, pela mina que rouba a perna esquerda do repórter e transforma toda sua objetividade numa subjetividade forçada.

Herr vai em outra direção. Em muitos momentos é impossível dizer onde termina o Vietnã e onde começa o autor. Ele próprio não parece saber ou mesmo querer saber onde está esse limite.

A despeito de todas as comparações com a guerra no Iraque que serão levantadas, de tudo que o livro tem a ensinar a qualquer jornalista, não é isso que conta mais aqui. No dia em que a Guerra do Vietnã ganhar sua história definitiva, o livro não terá valor algum para saber datas, detalhes, nomes. Mas “Despachos” é fundamental para entender o amálgama de paranóia, depressão, bravura, culpa, tédio e burrice que se instala em qualquer pessoa num “teatro de operações”. Não há despachos do front nesse livro. Há despachos de Herr.

17.11.05

A um metro de Evo Morales



(uma versão dessa matéria foi publicada em NoMínimo)

Evo Morales está de tênis, jaqueta pesada de couro e o topo de sua cabeça é um formidável capacete de cabelo índio muito negro. Parece um pouco tenso. Fala baixo ao celular meio remendado olhando pela janela da sacada os muitos repórteres que o esperam no saguão do hotel e, por cima do próprio ombro, uns poucos que estão mais perto, apenas alguns degraus abaixo.

A dois quarteirões dali, na larga Avenida Mariscal Santa Cruz, garis ainda limpam o lixo de folhetos e bandeirolas de uma barulhenta e compacta manifestação comemorando os dois anos da queda de Gonzalo Sánchez de Lozada e protestando contra o racionamento do gás em botijão. Sánchez, que mal conseguia disfarçar seu sotaque americano nos pronunciamentos oficiais, foi tocado do palácio em outubro de 2003 depois de semanas de protestos contra a privatização do gás e do petróleo do país.

As lições de dois anos atrás parecem mais vivas que nunca. A "guerra do gás", como o episódio é chamado, ecoa como um sino de morte na campanha desse 2005. Morales está sempre vestido informalmente, deixando as gravatas para o vice Alvaro García Linera, impecavelmente metido em ternos retos que combinam com sua cara de menino grisalho. Gosta de discursar primeiro em aimara e quéchua, idiomas índios locais, e só então em espanhol. Parece a antítese perfeita para toda a classe de políticos profissionais que a Bolívia viu prometer e fazer muito pior na última década e meia. Não à toa, está com 33% das intenções de voto, sete pontos à frente do segundo lugar, Jorge Quiroga, um juiz gordinho e escanhoado que presidiu o país por alguns meses entre uma queda de mandatário e outra.

Mas mais que indumentária, as lições de 2003 estão escancaradas nos programas de governo: mesmo os partidos de direita, autores do que Morales chama de "saque", propõem taxação pesada sobre o produto, fazendo petroleiras de todos os hemisférios – inclusive a Petrobras, responsável por 15% do PIB do país – roerem as unhas.

Morales, ninguém parece ter esquecido, já fala do gás desde 1997, quando concorreu à presidência pela primeira vez. Logo, ele pode esse ano tomar um passo adiante dos outros candidatos: propor não só que se taxe fartamente o produto, mas renacionalizá-lo, re-comprando a infra-estrutura necessária para sua industrialização e transformando a YPFB numa estatal de petróleo "potente como a PDVSA e a Petrobras".

Não é preciso mais que esse pequeno passo para fazer qualquer dos milhares de executivos estrangeiros no país suar. E para, muitos crêem, ganhar a eleição.

A conjuntura tem ajudado. As comemorações dos dois anos da saída de Sánchez de Lozada foram muito engordadas pelos protestos contra a falta de gás. Filas e mais filas por botijões contados, brigas de tapa ao lado dos caminhões que distribuem o produto, gente mais pobre cozinhando com lenha. Tudo isso tem funcionado como um incômodo lembrete do despautério que é faltar gás no país que tem a segunda maior reserva do combustível na América Latina. E beneficiado Morales.

A coisa parece tão certa que mesmo os que quase nunca se metem de verdade em campanhas já apareceram: um grupo de artistas montou uma coletiva de imprensa para entregar a Morales um manifesto do que a classe espera desse governo "progressista e democrático". Ele desce da tal sacada, distribui sorrisos e segue para a pequena tribuna no saguão que segundos antes olhava desconfiado. Ouve as reclamações, pede desculpas sem muito pudor por não ter dado tanta atenção quanto devia à questão e satisfaz os presentes com suas promessas. A coisa toda termina com uma cantora subindo ao minúsculo palco para interpretar uma ranchera. Um outro artista de bigode daliniano aparece com três taças que enche de vinho de garrafão. Os outros ficam com copinhos plásticos para café. Ergue-se um brinde e Morales já está agarrado ao celular de um repórter de rádio, criticando Sánchez de Lozada e dizendo que "essa lição aprendemos". Todo mundo fica com o copo em suspenso por dois minutos até que a coisa acabe, fios de vinho descendo pelos braços de alguns. O repórter comenta, termina, vai embora, alguns colegas o maldizem entre os dentes, Morales derruba meia taça no chão como oferenda à Pachamama, a mãe-terra dos bolivianos, bebe o resto rápido e sai de fininho. Encurta rapidamente a pé os cerca de duzentos metros que separam o hotel do congresso nacional com uma entourage mínima e quase ninguém o reconhece. É um índio a mais nessa cidade grande.

Pinota para dentro do Congresso e some no escritório da segunda liderança. A secretária diz que "Dom Evo" me espera. Me surpreendo ao encontrar uma pequena turba de jornalistas estrangeiros e dois documentaristas bolivianos. Os que ficam mais para trás na rodinha que se forma parecem amarrotados e cansados. Um deles diz que o maior legado boliviano é sua úlcera, fruto de um ano e meio nas notícias do país. Morales começa a falar e todos ouvem, gravam, anotam e filmam atentamente cada palavra dita de forma precisa, carismática e baixa.

Três anos atrás, falar com ele era fácil. Qualquer tique no sismógrafo político da Bolívia era acompanhado por um comentário seu. O número de seu celular - de seus dois celulares, melhor dizendo - era o segredo mais mal guardado da Bolívia e ele sempre estava disponível a comentar sobre qualquer coisa com uma frase de efeito boa para abrir matérias. Hoje é quase impossível encontrá-lo sem se acotovelar com colegas, sem pôr o gravador ao lado de outro, sem uma breve diplomacia para ver quem fala com ele em exclusivo primeiro.

Não que ele tenha perdido o apetite pelas manchetes. O que lhe falta é tempo, agora que parece prestes a virar presidente. Mas sempre que há uma boa oportunidade, está lá. Como não ir à Cúpula dos Povos, à margem da Cúpula das Américas, em Mar del Plata, para xingar George W. Bush ao lado de Hugo Chávez e Maradona, como fez semana passada?

Depois de alguns minutos, a turba sai e Morales está sozinho na sala comigo, uma jornalista francesa, dois retratos a óleo dele mesmo e um retrato de um general antigo. Vou para o fundo da sala e a repórter acerta com ele detalhes de uma "grande matéria" que sairá pouco antes das eleições num veículo que não consigo ouvir (nota em 2007: era Alma Guillermoprieto, que fez um perfil fantástico para o New York Review of Books). Morales a convence a acompanhá-lo ao Chapare - sua área de maior influência - e, depois de perguntado, diz que não gosta de falar de assuntos pessoais. A jornalista sai e ele discretamente pede à secretária que dê a ela alguns telefones, entre eles o de uma tia em Beni que "o conhece bem".

- E agora, companheiro, em que posso lhe ajudar? - pergunta ele, me chamando com a mão.

Sentamos em lados opostos debruçados sobre a mesa estreita. O rosto de Morales está a um metro, não mais. Lhe pergunto sobre os últimos dias, os protestos, toda a discussão sobre o adiamento das eleições. Ele, sem mover um músculo nem alterar a voz, liga a máquina de retórica.

- Há uma aberta conspiração. Da direita fascista, racista, neoliberal, junto a agentes externos como a embaixada dos EUA. Conspiram e provocam o MAS, o Evo Morales e os movimentos sociais, - diz ele, tratando a si mesmo na terceira pessoa. - Estão preocupados porque hoje temos a grande oportunidade de ganhar com 50% dos votos mais um.

- As pesquisas lhe dão 33%, a melhor delas - retruco.

- Esqueça isso. São pesquisas - diz ele, dando exemplos de eleições passadas onde o MAS, em média, triplicou as estimativas de intenção de voto. - Dizem que estamos com uns 30%. Não quero triplicar de novo. Me basta ter 60%.

Enquanto falava, Morales mal sabia que dali a duas semanas as eleições seriam suspensas e remarcadas para o dia 18 de dezembro uma semana depois, pondo fim a um impasse de meses que pôs em lados opostos o Oriente, região mais plana e à direta politicamente, e o Ocidente montanhoso, onde a retórica "andina" de Morales faz sucesso. Os primeiros, representados por Santa Cruz, pediam há vários meses mais quatro assentos no Congresso, alegando que têm cada vez mais peso econômico e demográfico no país. As cadeiras sairiam de três cidades do Ocidente que, claro, se opuseram. A situação foi finalmente resolvida com a transferência de três vagas do Ocidente para o Oriente, uma a menos que o pedido. Já se discutia essa solução quando ocorreu a entrevista, e Morales parecia mais preocupado com a possibilidade de não haver eleições que com detalhes de assentos e distritos.Crê que vence de qualquer jeito. A menos que aconteça um golpe de estado arquitetado com a ajuda - claro - dos americanos.

- Anteontem estive em Santa Cruz, montamos um pequeno comício com apenas cinco dias de antecedência. Eu não queria. Disse: "vamos fracassar". Chego lá e mais de 15 mil pessoas me esperam. É por isso que estamos seguros. Mas quando um índio tem a possibilidade de ganhar, surge esse tipo de obstáculo. O tema das cadeiras é isso. Querem mais cadeiras para Santa Cruz e menos cadeiras para La Paz, Oruro, Potosí. O que é que muda? Nada muda. Isso é pretexto para postergar a eleição, desagregar os movimentos sociais e unir a direita. É parte de uma jogada da embaixada dos EUA.

Morales está à vontade declamando suas melhores frases de esquerda. Não há freio para atacar os EUA e isso sequer é novidade. Mas a coisa muda quando se pergunta das reservas que se começa a ter no Brasil de um governo "moraleista". Do temor de que também no vizinho comece a faltar gás. Morales é todo cautela.

- Não há razão para medo. A Petrobras é uma empresa do estado. Temos que fazer um consórcio dessas empresas de estado. Ela e a nossa YPFB têm que fazer uma aliança estratégica, de médio e longo prazo, pra resolver nossos problemas nacionais e, em seguida, o tema regional.

- Mas o senhor acha que a Petrobras e o Ministério de Minas e Energia podem gostar da idéia de serem taxados em 50% e terem seus ativos recomprados à força na nacionalização que o MAS propõe? –, pergunto. – Nenhuma empresa gostaria disso, não?

- Conversei a respeito disso e eles estão dispostos a aceitar as novas regras. Quando assinaram os contratos? Quando o barril de petróleo custava US$ 18, US$ 19 (está em US$ 60 hoje). Eu compreendo a posição deles perfeitamente. Mas vamos negociar as plantas de Cochabamba, e devolvê-las ao Estado boliviano. Esse tema é incontornável. Não estamos falando de confiscar, de expropriar. Renegociaremos e o Estado recomprará tudo por preços realistas.

No primeiro semestre, contudo, houve tensão na Bolívia quando a empresa brasileira anunciou que estava reconsiderando seus investimentos no país. Dois ministros bolivianos chegaram a correr para Brasília levando panos quentes. Morales passa por cima disso e afirma que o Brasil precisa do gás boliviano da mesma forma que a Bolívia precisa da tecnologia brasileira. "Será gás por tecnologia", vaticina. Não só tecnologia de exploração e produção de gás e petróleo, mas também para outros campos como a agricultura, que Morales quer mecanizar. "Vamos mecanizar e subvencionar, principalmente os pequenos e médios", diz ele, mais para o gravador que para mim.

Morales parece cheio de grandes visões. De que o gás vai financiar o salto boliviano. De que os índios do país ainda precisam se libertar. De que o país tem adversários poderosos que tramam um golpe diuturnamente. Talvez seja isso que mais o aproxime de Hugo Chávez, Fidel Castro, até Bolívar: a noção de que seu país é uma potência que só não desabrocha por que inimigos que temem seu verdadeiro valor não deixam.

Difícil evitar os paralelos com o Lula de três anos atrás. Morales é um líder popular, um símbolo antes de qualquer coisa, o índio que chega ao poder no país dos colonizadores à maneira do operário que chegou ao poder aqui, no paraíso dos patrões. Se Morales não vestiu um terno azul marinho, foi apenas porque isso provavelmente seria a senha de sua derrota. A Bolívia, em 2005, é o país da autenticidade milimetricamente controlada. Que sabe quando xingar e quando soar razoável.

– Olha, eu em uma época da minha vida política generalizava os oligarcas. Eram todos maus para mim. Hoje já não acho isso. Nem todos são maus. Há empresários produtivos, apolíticos, empresários democráticos e não facistas. E com esses eu converso. Semana passada me deram uma linda festa em Santa Cruz, um banquete. Rainhas da beleza de lá, e até ex-rainhas, tiraram fotos comigo. E sabe por que? Todos estavam mobilizados pelo tema da pobreza. De que eu venho dos pobres e trago o tema da pobreza. Me deram todo o apoio para o que quero fazer.

Não por acaso, Morales disse meses atrás que considerava Lula "um irmão mais velho". Falo do sentimento geral de decepção no Brasil e da acusação de que o PT chegou ao poder sem projeto ou quadros suficientes para executá-lo. É algo que dizem a respeito do próprio MAS aqui, e menciono isso. Morales parece um pouco ofendido com a insinuação. Sua expressão é a de quem tem azia. Desgosto e asco controlados. Parece francamente decepcionado.

- De cabeça quente eu pensaria que você é um agente de inteligência da direita dos Estados Unidos, - retruca ele, num sorriso atravessado.

Subitamente, fica monossilábico, se desinteressa da entrevista. Mais dois minutos e diz que temos que terminar. Deixa a mesa onde estávamos, senta-se numa poltrona do outro lado da sala e começa a abrir um jornal sobre a mesa de centro. Depois de checar o gravador, caminho até a porta próxima a ele e me despeço.

- Adiós, - diz, sem tirar os olhos das manchetes.

3.11.05

¡Se juega!



(Uma versão dessa matéria foi publicada na Trip)

Nunca saltei de bungee jump nem vi uma prancha de snowboard fora de uma vitrine de loja. Jamais consegui ficar em cima de um simples skate por mais 20 segundos e acho uma temeridade esse negócio de kite-surf – além de algo que mal consigo descrever. Sou, se um resumo fosse necessário a essa altura, um mané para qualquer coisa que se aproxime de um esporte radical. Mas todo sedentário tem seu momento de revolta. Chegando aos trinta anos, aos 93 gordos quilos e à calvície irremediável, decidi que era hora de tentar algo diferente. Viajei para a Bolívia – que é, afinal, aqui do lado – onde descobri que as pessoas descem de bicicleta aquela que é reputada como a estrada mais perigosa do mundo.

São 65 km de cascalho grosso descendo de La Cumbre, a 4.700 metros de altura, até Coroico, no começo da Amazônia boliviana, 3.600 metros abaixo. A descida dura cinco horas. A estrada é entalhada na pedra, tem em média três metros de largura e o abismo mora ao lado, sem qualquer proteção. Uma queda vertical de 400, 500, até mil metros. Todos os anos a La Cumbre-Coroico some com mais de trinta veículos, às vezes mais de 200 pessoas. O título sinistro não é marketing: foi conferido em 1995 num relatório do Banco Mundial.

O raciocínio que me levou a essa roubada foi simples e saudosista: ao longo de um ano, meu pai tentou me ensinar a andar de bicicleta com psicologia e rodinhas laterais. Não houve jeito. Até que um primo desvairado resolveu me pôr em sua bicicleta (muito maior, sem rodinhas) e me jogar do topo da ladeira onde morávamos. Funcionou, apesar de uns quantos tombos.

Entrei numa das dezenas de agências de turismo em La Paz que oferecem a descida, respirei fundo e disse que queria a La Cumbre-Coroico. Reconhecendo o tipo de longe, o agente sorriu e jogou a psicologia fora.

– Você terrr segurro de vida em seu país? – perguntou num sotaque carregado Jöeck, um alemão assustador que foi morar na Bolívia, onde mudou seu nome para um palatável Juan. – Não? Não se prreocupa, eles oferrecem segurro aqui. Dez dólarr.

Juan Jöeck me passa então um caderno onde posso ver minhas opções. Seguro para perda de um membro custava dez dólares. De vários, 25. Da vida, 30. Um pouco nauseado e já amaldiçoando a idéia da reportagem, devolvo a ele o folheto.

– Eles recomenda, mas não é que você prrecisa ter seguro. O que você faz com a dinheirro se morre, né? – diz ele, soltando uma gargalhada arrepiante.

Fico feliz em saber que Juan Jöeck é apenas um operador terceirizado que não vai estar no passeio.

No dia seguinte, entro no micro-ônibus e partimos para La Cumbre. Escolhi a operadora com a melhor reputação no país, a Gravity Tours. Eles têm bicicletas Kona (me dizem que isso é importante) com freios a disco (me dizem que isso é muito importante) e são dos poucos a fazer manutenção constante de seus equipamentos (eu sei que é muito importante). Enquanto passamos pelas favelas de La Paz a caminho de La Cumbre, o rádio toca Chili Peppers, hip-hop em espanhol e AC/DC. "Highway to hell". Eles têm que estar brincando.

Chegamos ao topo. Às oito horas da manhã faz um frio cão. Três graus. O ar mal entra nos pulmões e estou tiritando antes mesmo de sentir medo. Estamos, afinal, a mais de meio Everest de altura. Nos picos em volta há neve e lhamas pastam não muito longe de onde estamos. Guy, nosso guia para a descida, começa a explicação sem meias palavras.

– Porra-loucas voltam pro ônibus. Fechou alguém, volta pro ônibus. Foi lento demais, desculpe, mas vai pro ônibus. Se você começar a apostar corrida comigo ou com o Jubert (o outro guia) vai pro ônibus. Simples assim. Ser valente aqui significa voar. E isso é uma bicicleta – não foi feita para voar, para quem não sabe.

Guy, um mountain-biker belga que "encheu o saco da Europa", explica então que devemos frear com 70% da roda traseira e 30% da dianteira. Fico pensando em como medir isso quando ouço a revelação.

– Vocês vão descer a uns 60, 70 quilômetros por hora. E é nessa velocidade com que vão acertar o chão se voarem sobre o guidão. Dói bastante. Freiem mais sempre com a roda de trás.

Setenta por cento, trinta por cento, setenta por cento, trinta por cento, fico repetindo como um autista, enquanto tento memorizar qual freio é qual.

Pro santo

Já montados na bicicleta, bebemos álcool hidratado dando um golinho "pro santo" antes. A Pachamama, mãe-terra dos bolivianos, abençoa a viagem. A coisa desce queimando o estômago vazio. O grupo de nove pessoas – britânicos, irlandeses, um islandês, uma amiga colombiana e o alien brasileiro – começa a descer.

O início do caminho é mole. Quatro pistas em mão dupla de asfalto lisinho. Bom para acostumar com a velocidade. Dá até para olhar os paredões de rocha cobertos de neve, lindos, enquanto se ultrapassa um caminhão com facilidade. Guy nos conta depois que nesse trecho descemos sem sentir a uns 80 quilômetros por hora. Mesmo na marcha mais pesada, é impossível pedalar.

Já estou achando tudo lindo quando vejo nosso guia abanando o braço. Presto tanta atenção nele que nem noto o asfalto acabando. Atinjo o cascalho ainda a 70 km por hora. Minha mandíbula treme. O traseiro sente cada pedra. Me assusto. Freio forte. Onde ficam os 70% mesmo? Minha roda traseira levanta. Vejo o chão de frente, em tracinhos rápidos. Jogo o peso para trás e a bicicleta quica e volta a andar em duas rodas, bamboleando. Ancoro a bicha no chão. Tem horas em que estar fora de forma e pesado é uma bênção.

Tem horas que não. Num certo momento, a estrada pára de descer. Fica plana, e começa a subir. Eu me lembro de ouvir que havia "uma pequena subida", mas acho que ignorei enquanto me embasbacava com a paisagem. Não que seja íngreme, mas com a altitude, a falta de ar e de preparo físico, qualquer subida é um sacrifício. Meu pulmão arde depois de cinco minutos. Me afogo a seco. Vou sendo ultrapassado pelos outros. De repente, sinto o vento no rosto de novo. Estou me movendo sem esforço e sem mexer os pés. Olho para trás e vejo Jubert, franzino e boliviano, empurrando a minha bicicleta, pedalando por nós dois. Não satisfeito, ele ainda começa a conversar, e em frases longas. Eu mal consigo dizer "sim" e "não". Mesmo assim, por pena, depois de um quilômetro digo a ele que vou descer e andar até o último cume. Ele assente e fica pedalando do meu lado, muito devagar.

Finalmente acaba a ladeira e damos a primeira parada. Olhamos em volta, a estrada ainda não é muito estreita. Mais abaixo, no vale, vemos uma linhazinha fina serpenteando pela encosta. Enquanto Jubert saca fora minha pastilha de freio, incandescente e já pela metade, e põe uma nova em folha, rezo para não ouvir o que ouço: é, é por ali que vamos descer. Terminamos de comer o chocolate que nos dão e beber um pouco de água, montamos e nos encaminhamos, como diz um dos irlandeses, "para a morte".

É uma matemática desgraçada, e cujo resultado nunca bate. Quanto mais devagar você vai, mais sente cada pedregulho. Mais rápido, menos pedregulho. Se você cai, óbvio, sente cada pedra, e aí faz muita diferença em que velocidade você vai.

No chão
Fez toda diferença pro nosso companheiro da Islândia. Ele alugou o pacote completo: óculos, macacão, calça impermeável, bicicleta com suspensão traseira. Só esqueceu de uma coisa: 30% na dianteira, 70% na traseira. Voou.

Encontramos Albert amontoado no acostamento, a bicicleta no chão. Tinha uns cortes no lábio, a cara estava meio ralada, todos os dentes no lugar. O mesmo não dá para dizer da mão direita. Seu mindinho tinha ganhado uma articulação extra, para fora. Albert evitava falar.



Subitamente todos memorizam qual mão freia só 30%.

A estrada vai ficando mais estreita e mais íngreme. Somos instruídos a andar pelo lado de fora da pista, perto do abismo, longe dos carros e caminhões que sobem. Mal vemos a pista, porque pedalamos no meio das nuvens. Desmoronamentos comem pedaços da beirada grandes o bastante para caber uma bicicleta. Descubro depois que o projeto foi executado por prisioneiros paraguaios da Guerra do Chaco, nos anos 30. Isso explica alguma coisa. Sigo amaldiçoando ser ateu e não saber rezar.

O cascalho vai ficando mais grosso, a estrada continua estreita – e mais íngreme. Os dedos começam a ficar exaustos de frear no talo depois de duas horas. Parece suicida, mas você começa a se acostumar à velocidade e à tremedeira e deixa a bicicleta deslizar quase solta, freando só nas cruvas, que são muitas e fechadas. Passo por algumas das centenas de cruzes que pontuam o caminho. Freio um pouco. E depois esqueço. Desço, diminuindo um pouco quando passa algum caminhão.

Já é a quarta hora no caminho. Entramos agora na fase que Guy descreve como a mais perigosa. A estrada fica mais larga, os ciclistas mais acostumados com a velocidade – e aptos a voar. As curvas fechadas começam a me enjoar. Em algumas há parentes de vítimas sinalizando com bandeiras verdes ou vermelhas se vem alguém, esperando uma moeda.

Vou deslizando pela pista sem ouvir nada mais que o barulho do vento nas orelhas e o tec-tec de um motor distante. Viro à toda numa curva fechada e de repente estou a dois metros de um radiador enorme, com a palavra VOLVO pintada em letras garrafais. Bamboleio, me assusto, desvio, xingo e paro no acostamento. Estou a dez centímetros de um precipício simpático e convidativo. Os passageiros no ônibus me olham como se eu fosse um alien verde. Me sinto um alien verde.

Devagar, o clima vai esquentado, a estrada alarga mais e fica poeirenta e seca. As bananeiras anunciam que chegamos à Amazônia. Cruzamos um riacho e de repente estamos num pequeno povoado, nosso ponto final. A biboca onde tomamos a cerveja comemorativa parece uma sucursal do paraíso, apesar do traseiro ainda se lembrar bem do inferno. Cada um ganha uma camiseta atestando que sobreviveu e todos estão um pouco bobos com a própria façanha. Conquistamos o direito de contar vantagem e rimos à toa disso.

* * *

Enquanto terminamos a gelada, o motorista carrega o micro-ônibus encardido com as bicicletas, senta-se e nos espera ao volante.

– E então, prontos para subir a serra? Agora é fácil, vocês já conhecem o caminho.

De repente nada parece mais seguro que estar sobre duas rodas.