9.7.12

Depois de um longo e tenebroso...

Já era hora de você poder assistir Personal Che na íntegra, não?


Personal Che PORTUGUÊS from Douglas Duarte on Vimeo.

7.12.11

Sobre o nosso cérebro e as imagens no cinema, na TV e na ilha de edição

Isso adiante é um rascunho – e também uma defesa acabada do rascunho para a arte em geral. Fala de tipos diferentes de processos cerebrais – rápidos e animais, lentos e "humanos". Talvez seja útil ler um detalhamento desses processos aqui para entender melhor a que me refiro. Monte o que falta do ensaio em sua cabeça.

Como os filmes eram editados antigamente? Ora, em pequenas telas mal iluminadas de moviola em que a película passava. Uma imagem de baixíssima resolução que pedia a cada fotograma que os primeiros espectadores – diretor e montador – nunca saíssem do que se pode chamar do modo de abstração. O que quero dizer com isso? Que o fosso entre a recepção primeira e a final, a tela de cinema, era coberto pela imaginação, pela abstração dos realizadores. Como se a todo momento tivessem que, de forma bastante consciente, imaginar como aqueles fotogramas fugidios apareceriam gloriosos, enormes, coloridos, numa enorme sala escura.

O mesmo nos primeiros tempos da televisão. A "tela" do editor era a vitrine do switcher. Ou seja, ele via o espetáculo sem recorte, com muito mais cor que qualquer pessoa em sua sala de televisão. Via de regra, ele não era a pessoa que operava os cortes, gritava instruções. Havia também aí um salto no vazio. Ele devia imaginar como aquilo que acontecia no estúdio – um telejornal, uma novela, um jogo de futebol – apareceria num televisor de tubo, primeiro em preto e branco e depois em cores. Estamos falando de edições ao vivo, que hoje em dia são menos frequentes: noticiosos, eventos esportivos, poucas novelas.

Qual é a questão que decorre disso, hoje? Toda essa bagagem, gerada dessa forma cheia de saltos, imaginações, fabulações visuais, efeitos apenas imaginados, aferidos a posteriori quando se via seus resultados na sala escura, lembrados de outros filmes-influência e mimetizados, foi herdada e é retrabalhada todos os dias em sistemas onde é possível – não estou dizendo que aconteça sempre – esquecer que existe um fosso, a necessidade de um pulo. No momento de serem editadas as imagens de hoje, quase todas elas parecem televisão em qualidade final.

Há diferenças, claro. Uma ilha de edição típica tem menos distrações que uma sala de estar típica e um pouco mais que uma sala de cinema típica. Mas o princípio se mantém. Mas, correndo o risco da generalização: podemos nos enganar que aquilo que estamos vendo é uma imagem final. Longas metragens ou telejornais, e muito mais, são vistos pela primeira vez em algo que lembra em muito, por suas dimensões, cores etc, uma televisão.

Ter na cabeça uma imagem final tem consequências e é bom (na mesma medida que mais e mais difícil) ser consciente delas: podemos ver os cortes com precisão e além disso, somos cada vez mais educados visualmente em sistemas onde podemos ver os cortes de outros filmes com precisão, e quantas vezes quisermos. Começamos a aprender como é feito, em vez de como nos afeta.

O que quero dizer é que quanto mais precisos nos tornamos, menos erramos e menos inventamos também. Quanto menos consciente nos tornamos dos saltos – porque a "imagem de controle" já é bastante bonita e tem cara de final – menos nos damos conta do processo, menos imaginação investimos nele, menos atenção damos a como seu resultado pode afetar o público final. É muito fácil imitar um corte dos melhores montadores, seu estilo de raccord, seu sotaque, sua gramática. É quase impossível obter o efeito de suas montagens no público. É muito fácil achar que o público reagirá àquela imagem da mesma maneira que nós reagimos a ela na ilha de edição. É muito fácil pensar que aquela é a imagem do filme, e não um estágio apenas. É muito mais difícil, hoje, estar consciente de que estou numa ilha de edição; como isso aparecerá num cinema, num celular, numa TV?

O processo, creio, é muito mais inconsciente, recorre muito mais a processos cerebrais de tipo 1, rápidos e "animais", e muito menos a de tipo 2: abstração e julgamento, que são atividades conscientes lentas, mais evoluídas do nosso cérebro e às quais ele tenta, sempre que possível, não recorrer, porque consomem muita energia. Mas não à toa foi esse tipo de processo lento que deu ao homem coisas únicas dele.

Arte, por exemplo.

22.8.10

Life has its own inner time

"Sometimes, as I watch a couple offer one another a spoon of fig-and-nuts ice cream, I cannot fail to feel physical pain remembering promises we've offered each other like these two creatures beyond me. I tilt my eyes up and look at this giant Indian almond tree, quite old, tall and imposing. It is the end of fall now, and it is again full of young and green leaves. Months ago, it was covered in red, then weeks later naked and vulnerable to the elements, letting the grey sky pass through its branches. I could anticipate the moment when the green would come again like I can foresee the moment where these young leaves grow, grow old and red and stained and finally fall to the ground, inanimate. When I think of that, my first impulse is to look at them and then look more at them, and never stop looking at them and soak in their changing beauty, moment by moment, stain by stain. Then I brutally decide to take care of something else and let the back of my mind deal with the interruption. Life, like leaves, has its own inner time."

10.2.10

Diário: Elegância/Agilidade/Eloquência

Fred Zinnemann
Pierre Morel
Michael Mann

29.1.10

Diário

28.1.10

Diário


Pedro Costa

27.1.10

Diário

26.1.10

Diário



Alain Resnais

22.1.10

Diário

20.1.10

Diário



Werner Herzog

19.1.10

Diário



14.1.10

Diário

13.1.10

Diário



Johnnie To

19.8.09

Aos visitantes

Atenção: aí vem um daqueles posts culpados-mas-espertos, em que o blogueiro admite que não está tendo tempo de atualizar o blog, muito trabalho, etc, etc, mas se sai com uma piadinha que mantém o interesse do visitante circunstancial. Você já leu em outros lugares.

Agora acaba de ler aqui.

Em tempo: As matérias publicadas por aí e eventuais notícias de Personal Che continuam, ok?

18.8.09

Os com-jaleco

Hippie colombiano anda alinhado



(Essa esquina foi publicada originalmente na piauí 35 e é assinada em compadrio com a cidadã paulisto-bogotana Camila Moraes)

Numa recente terça-feira nublada, Alejandro - um hippie colombiano que acha meio insólito "isso de dar o sobrenome" (e por isso não dá) - estava sentado na calçada diante da matéria-prima de seu labor: contas, miçangas, palhinhas. Foi quando apareceu um colega seu aflito, sacudindo um jornal (gratuito, como convém) no ar.

Uma das manchetes espalhou apreensão naquele canto de praça em que a década de 60 parecia imortal: "Hippies terão uniforme." "O que essa mulher vai fazer a gente usar?", pensou o colombiano do alto dos seus suspeitos, mas declarados, 42 anos de idade. (Suas rugas remetem mais à quadra dos 60, ainda que a disposição geral seja de uns trinta e poucos.)

A mulher é Blanca Inés Durán, engenheira concursada que desde o ano passado se tornou subprefeita de Chapinero, algo como a Rive Gauche ou o East Side de Bogotá: o bairro dos boêmios e artistas, talvez um dos quarteirões mais tolerantes de toda a Colômbia.

O espanto dos alternativos é que Blanca sempre foi considerada "um deles". Não necessariamente "deles", os hippies, mas "deles", os diferentes. Ali estava, afinal, uma lésbica militante que só aceitara disputar o cargo ao saber que dois ou três candidatos conservadores queriam fechar os diversos bares gays da região. Os mesmos bares - ela própria conta - onde afogara as mágoas do fim de seu primeiro casamento com uma mulher.

A surpresa com o viés autoritário da medida não se restringiu à turma da miçanga. A imprensa colombiana fez troça da iniciativa, anunciando a distribuição de escovas e tubos de laquê num novo programa, "Hippie Limpo e Bem Penteado".

Quando a poeira baixou, vieram à tona os principais pontos da medida. Se a palavra "uniforme" havia causado choques apopléticos nos cabeludos, foi quase fatal a notícia de que seriam obrigados a portar um "carnê". Para domar a ansiedade, muito se fumou, e de tudo. Teriam eles de pagar mensalidade para trabalhar na rua? Não, o carnê se tornaria apenas uma espécie de carteira de identidade. Pela qual teriam de pagar? Também não.

Durou pouco o alívio. O pessoal logo se deu conta de que portar identificação equivaleria a uma sentença de morte para quem vive do comércio de badulaques e outras mercadorias nem sempre aprovadas pelo Ministério da Saúde.

Com o sociologuês tinindo, Blanca explica: "A idéia é que só os participantes dos nossos projetos de reinserção econômica recebam os carnês. O que queremos é justamente que as pessoas encontrem projetos produtivos e deixem sua situação de rua."

Como a frase não parece significar nada, é o caso de perguntar coisas mais concretas. E a história dos uniformes? "Não se trata exatamente de uniformes, mas de jalecos. Precisamos identificar quem tem carnê e quem não tem, compreende?" Durante quanto tempo os sem-jaleco ainda poderão vender na rua? "Em pouco mais de um ano todos os ambulantes estarão uniformizados. Vamos fazer batidas frequentes para garantir que isso seja cumprido." Ou seja: quem estiver na rua por falta de opção poderá contar com os programas do governo. Quem estiver por opção, que vá atrás de outras praças para exercer o desbunde.

Um projeto que mexe com a identidade dos hippies metendo-os em uniformes - vá lá, jalecos - não poderia ter chegado em momento mais crítico, justo quando eles próprios nutrem dúvidas sobre quem exatamente são.

"Não existe isso de ser hippie e ponto. Tem vários tipos: hippie ermitão, hippie andarilho, hippie caminhante...", explica Alejandro. Qual seria a diferença entre esses dois últimos? "Bom, o andarilho passa a vida andando, mas não faz nada. Já o caminhante é artesão, se movimenta, vende suas coisas num lado e no outro. Eu já fui hippie andarilho. Hoje acho que sou caminhante, um artesão comum e nada mais." Ele fala com os olhos meio perdidos na fumaça. Seu corpo traz tatuagens desbotadas e o cabelo está preso por uma faixa apache.

Ao lado de Alejo está Rodolfo, outro que também não declina o sobrenome. Como trabalha com figuras de arame, pode-se supor que seja hippie caminhante. Essa história de jaleco e carnê o deixou muito desgostoso. Está ponderando se não seria hora de correr mundo de novo, como fez outras vezes. Já viveu na Europa, de país em país, vendendo pulseirinha de palha por 8 euros. Voltou "bem de vida", se deu até ao luxo de trazer para a Colômbia uma cadelinha cocker - "Lindinha", ele diz.

Seu rumo agora deve ser outro: Venezuela. "Dizem que lá o Chávez apóia os vendedores de rua. Parece que dá até mesada", comenta, torcendo com um alicate as pétalas de arame de uma flor. A revolução bolivariana está prestes a virar odara.

"Hippie tem que viver nas comunidades, senão, não é hippie. Sabe Woodstock? Pois é, ser hippie é aquilo", Alejo sintetiza. "Ter liberdade, fazer amor sem preocupação, ficar pelado num rio..." Donde a consternação geral: ficar pelado em rio é muito difícil de jaleco. A subprefeita Blanca Inés Durán não está compreendendo esse lado.

Distribuição alternativa

(publicado na piauí 35)

Pedro - se é que ele se chama Pedro - já lançou dezenas de filmes brasileiros no mercado. Graças a ele, seja no Japão, no Canadá, na Romênia ou no Tocantins, cinéfilos tiveram acesso a uma enorme variedade de obras, desde comédias da pornochanchada a documentários papo cabeça vistos por uma meia dúzia de gatos pingados. Ainda assim, Pedro não é famoso; a imprensa especializada ignora seu trabalho. Até onde se sabe, ele não compareceu (porque nem o convidaram) à posse da nova diretoria da Agência Nacional do Cinema, um beija-mão que reuniu o "quem é alguém" do ramo, em junho.

Produtores ciosos, auteurs soberbos, distribuidores neurastênicos, tremei! Neste exato momento, Pedr1nho - com o número 1 no lugar do i - pode estar jogando suas obras na internet, para gáudio dos internautas sedentos por filmes nacionais gratuitos. Pedr1nho é provavelmente - difícil ter certeza, dado que a classe pirata não tem sindicato - o maior fornecedor de audiovisual brasileiro não contabilizável na rede.

O fruto de seu esforço pode ser visto nos principais sites de compartilhamento gratuito de arquivos, como o The Pirate Bay, o Mininova e o Demonoid, que escapam da perseguição aos infratores de direitos autorais materializando-se a cada par de meses em novo servidor, com frequência sediado em outro país.

Pedro faz questão de não ser confundido com um camelô que vende dvds arrasa-quarteirão hollywoodianos, -shows de pagode e música sertaneja. Ele tem, com o perdão da palavra, uma griffe. O freguês que recorre aos seus serviços sabe exatamente que nicho ele explora: filme nacional. É pegar ou largar. No catálogo há também documentários de surfe, shows de rock e animações legendadas. (Pedro não quis explicar se é surfista ou tem filhos.)

A carreira de pirata desse administrador de empresas de trinta e poucos anos começou em 2004, quando ele pôs na rede o arquivo de Dois Perdidos numa Noite Suja, filme de José Joffily baseado na peça homônima de Plínio Marcos. Pouco mais de 40 mil espectadores pagaram ingresso para ver a fita no cinema, resultado considerado modesto. "Eu achava que ninguém ia se interessar, mas acabou que muita gente baixou e começou a me pedir para lançar outras coisas do Brasil", ele conta. "A partir daí, não parei mais."

A sacada foi incluir as palavras "Brazilian Cinema" no nome do arquivo. Assim, para assistir a um filme brasileiro, não é preciso buscar nenhum título específico. Basta digitar as duas palavras no Google e acrescentar a palavra torrent, nome de um tipo de sistema que permite compartilhar qualquer conteúdo com Deus e o mundo. Em frações de segundo, uma variada videoteca da produção brasileira pós-retomada se abre diante dos olhos do cinéfilo deslumbrado. O que se vê são páginas e mais páginas que oferecem, por exemplo, Feliz Natal, de Selton Mello, Doutores da Alegria, de Mara Mourão, O Aborto dos Outros, de Carla Gallo, Querô, de Carlos Cortez, Cão sem Dono, de Beto Brant, e Baixio das Bestas, de Claudio Assis.

Pedr1nho já contrabandeou mais de 150 filmes para a rede. A oferta pode ser bem direcionada, mas a clientela é heterogênea. Há o grupo dos que reclamam do preço de um dvd. Outros vivem no interior, em cidades onde a oferta de filmes nacionais nas salas de exibição é especialmente anêmica. Um terceiro grupo, numeroso e especialmente agradecido, se compõe de brasileiros que moram no exterior e dependem da web para ver filmes nacionais. E há, por fim, um número significativo de estrangeiros que se interessam pela produção brazileira. "Um pessoal da Bulgária já me escreveu algumas vezes, dizendo que montaram uma 'Brazilian night' em Sófia com os filmes que eu pus na rede", se empolga o bucaneiro. "Eles baixam as legendas em inglês e traduzem para o búlgaro. Dizem que é um sucesso." É mais do que Celso Amorim já fez pelas relações Brasil-Bulgária.

Em 2005, Pedr1nho se juntou a nomes agora totêmicos do "udigrúdi internético" do país - gente que se escondia atrás de apelidos esdrúxulos como 614uc0, ToToH ou huricane_brazil - para fundar o Compartilhando, um dos primeiros sites brasileiros a oferecer de graça arquivos não só de filmes, mas também de videogames, músicas e livros. O site foi de vento em popa durante dois anos, até a Polícia Federal avisar ao huricane_brazil virtual que sua versão de carne e osso podia acabar na cadeia, caso ele insistisse na pirataria a torto e a direito.

O fato de ter a polícia no calcanhar não quer dizer que piratas como -Pedr1nho não tenham um código de ética, ainda que peculiar. "Outro dia caiu na minha mão uma cópia do l.a.p.a", o documentário de Cavi Borges e Emílio Domingos sobre o mundo do hip-hop no Rio de Janeiro. "Não copiei", diz ele. É que os produtores estão tentando distribuir o filme pelas comunidades pobres do Rio, e Pedr1nho, como Robin Hood, não gosta de tirar o pão de quem tem poucos recursos.

Exemplo contrário é o filme Estômago, de Marcos Jorge. Pedr1nho ficou orgulhoso em pirateá-lo. "Um baita filme, cara. E foi muito mal explorado comercialmente no Brasil. Eu quase não consegui ver. Se o diretor lançasse na rede e as pessoas pudessem pagar o que quisessem para assistir, eu não teria pirateado", diz ele, propondo um business model alternativo para o cinema nacional. É esse o modelo adotado, por exemplo, pela banda inglesa Radiohead para distribuir seu disco In Rainbows. "O Estômago tinha que ter representado a gente no Oscar, em vez daquele filme horroroso, o Última Parada 174."

Pedr1nho garante que não se vê como um justiceiro audiovisual, mas, como ates-ta sua opinião sobre L.A.P.A. e Última -Parada, há um juízo moral, estético, econômico - político, na verdade -, que o faz decidir se vai ou não gastar as onze horas necessárias para transferir um dvd para a rede. "Eu já coloquei de tudo. Agora, só o que gosto." Ele cita um exemplo: "Pirateei Irma Vap: o Retorno." O filme, dirigido por Carla Camurati, não mereceu uma recepção particularmente festiva, nem por parte do público, nem por parte da crítica. "Hoje em dia eu jamais lançaria isso", diz Pedr1nho. No Brasil, todo mundo é crítico de cinema. Até os piratas.

22.7.09

Arte


Não há outro jeito de definir a personalidade cheia de cacoetes e manias de Gay Talese: artista é assim. Em caso de dúvida, basta ver esse guia que ele fez para se orientar na feitura de sua obra-prima, Frank Sinatra está gripado, publicado na Esquire em 1966. É sempre bom ver o quanto um método depende de boas mãos para render.

15.7.09

Onze casinhas engraçadas

De frente para o mar, sem janelas

(publicado originalmente na piauí 34)


A residência de Hugo Simas de Carvalho Filho parece ter saído daquela cançãozinha infantil de Vinicius de Moraes: "Era uma casa muito engraçada, não tinha teto, não tinha nada" - ou melhor, teto há, mas é um passeio público. O contratempo não impediu Carvalho de ter telefone fixo, água corrente e ar-condicionado, além de uma das vistas mais bonitas do Rio de Janeiro - isto é, embora a casa não tenha janelas.

Carvalho - conhecido como Cabo, sua patente quando foi dispensado do Exército - mora no airoso bairro da Urca, ao lado do segundo marco mais importante do bairro (o primeiro é o Pão de Açúcar). Seu vizinho é o célebre Cassino da Urca, um prédio de estilo eclético que, entre 1922 e 1933, abrigou o Hotel Balneário, depois o Cassino e mais tarde a TV Tupi, entre 1953 e 1979, quando então foi entregue às traças. No momento, o prédio está sendo reformado pelo Istituto Europeo di Design, o ied, para abrigar a filial carioca da instituição, fundada em Milão.

Não se acha sua casa logo de cara. Primeiro, amarrado numa frondosa amendoeira, se avista um varal de roupas, depois uma mesa com algumas cadeiras de plástico e por fim um caiaque ver-melho tostado pelo sol. É o quintal. O Cabo, um homem corpulento de 65 anos, mora há mais de três décadas ali.

"Ali" significa de frente para a Baía de Guanabara, debaixo da calçada eleva-da que circunda a Praia da Urca. É por isso que, ao acordar, o Cabo apenas cruza uma breve faixa de areia e já está no mar para cumprir seus 5 quilômetros diários de natação. Originalmente havia ali "cabines de vestir", construídas pelo Hotel Balneário para que os hóspedes pudessem recatadamente vestir suas roupas de banho e nadar nas águas ainda límpidas da baía. Com o passar dos anos, entretanto, a pudicícia se tornou démodé e as cabines acabaram abandonadas. Isto é, até a chegada do Cabo.

Seu primeiro contato com o bairro foi no final dos anos 60, já quando ele trabalhava como salva-vidas. Entre um salvamento e outro - o que naquele espelho d'água devia acontecer a cada solstício de inverno -, investigou o território. Todas as cabines estavam vazias e caindo aos pedaços. Ele levou dez anos até decidir se mudar. Primeiro instalou um catre numa cabine, depois um fogareiro a gás na seguinte, até que começou a pôr abaixo as paredes entre elas para criar cômodos mais espaçosos. "Que é que eu ia fazer? Eu fui... tomando, né?", diz ele, demorando a escolher o verbo. "Faz muito tempo, isso."

Hoje a casa equivale a onze cabines. As paredes foram cobertas de ladrilhos, "para evitar a umidade"; a cor, azul-bebê, foi escolhida - curiosamente - para "dar a impressão de mais espaço". É de fato apertado, mas há um quarto para ele e a mulher, outro para o filho, de 8 anos, e uma sala-cozinha com fogão, duas geladeiras e outras comodidades do-més-ticas. Carvalho se apressa em mostrar o relógio de luz e uma conta, além de colar o gancho do telefone no ouvido do vi-si-tan-te para que ouça a linha. "Aqui não tem gato, não. Eu pedi e eles instalaram, ué. Como todo mundo."

Há certa justiça poética em sua história. Um dia o Cabo deixou a vila de pescadores onde nasceu, na região de Niterói, para trabalhar no Rio. A casa que tinha lá passou anos fechada, até que as Forças Armadas anexaram o terreno ao Forte do Imbuí e todas as casas sem uso (como a dele) foram demolidas. O Cabo não associa a invasão da Urca a esse episódio, mas confessa que de vez em quando pega o caiaque e cruza a Baía de Guanabara até a praia onde morou: "E eu não posso descer na areia, dá para acreditar?"

O Cabo acredita na instituição da propriedade privada: "Não fosse eu para vigiar o prédio do cassino, isso aqui tinha virado um paiol de vagabundos", garante. Forasteiros que tentassem pernoitar ou se drogar ali eram suma-riamente escorraçados.

Ele conta ter recebido com alegria a notícia de que o prédio seria refor-ma-do - mas o ied não gostou de descobrir a vizinhança. No ano passado um fun-cionário interpelou o Cabo e, educa-da-mente, disse que ele teria de sair dali.

A questão ainda é nebulosa. A es-cri-tura do prédio não estipula com exatidão se as cabines fazem parte ou não do conjunto. O Cabo, por sua vez, tem algumas taxas pagas, mas nenhum documento de posse. O complexo cabineiro habita um vácuo jurídico.

Está em curso uma polêmica fundiária que divide o bairro, mas, é bom que se diga, o Cabo não está no centro dela. Os olhos se voltam para o ied , acusado de se instalar ali sem avaliar impactos sobre trânsito, segurança e rede de esgoto. A associação de moradores encheu as ruas de cartazes bradando "ied não". A obra, cujo custo total se estima em 17 milhões de reais, está no fim da primeira fase. Há algumas semanas, a Câmara de Vereadores decidiu por unanimidade tombar o imóvel, destinando-o ao uso cultural, decisão recebida como um nocaute pela turma do não.

Inspirado pela reação dos habitantes locais, o Cabo decidiu levar seu caso a instâncias extraordinárias. "O prefeito nem me deixa chegar perto", ele diz, mas com Lula acha mais fácil. Já conseguiu até entregar três cartas ao chefe da nação, em diferentes eventos no Rio. "Sempre fiz de um jeito muito discreto", sublinha.

O Cabo pediu que o presidente falasse com os militares para lhe permitirem voltar a morar com a parentela na antiga vila de pescadores. Recebeu três respostas com o timbre do Palácio do Planalto: entendiam seu pleito, mas não havia o que pudessem fazer. A idéia, então, é ser mais chamativo da próxima vez que Lula estiver na cidade. "Vou beijar o pé dele para vocês da imprensa tirarem foto", avisa. "Aí eu quero ver."

25.6.09

Olá Bagdá

Uma amiga minha me escreve agora há pouco:

"Cheguei a Bagdá num belo passeio de helicóptero pela manhã para escrever algo sobre o Jaish al-Naqshbandia [explicação minha: um grupo de milicianos sunitas que eram parte do regime de Saddam]. Alguns ataques sectários horríveis aqui. Um caminhão de legumes explodiu em Sadr City ontem e uma bomba em outro subúrbio xiita hoje. Até agora nenhuma reação, mas queria ver se isso muda depois da debandada americana marcada pra 30 de junho. (...) Você viu a matéria do Guardian sobre as cultivos legais de ópio?"
Seu endereço anterior era em Cabul, daí a intimidade com que trata as plantações de papoula. Faz alguns anos que ela deriva de guerra em guerra. Logo depois que nos conhecemos foi passar uma semana com traficantes da Cidade de Deus. Não tenho coragem de lhe dizer o óbvio, que pouca gente sem nada para ganhar - dinheiro, liderança, etc - tem qualquer interesse nessa guerra estúpida. Só escrevo isso aqui na fé de que seu pouco português tenha sido esquecido.

Johanna, magra como um graveto, que de vez em quando pintava as unhas dos pés de vermelho.

20.6.09

Chenouras


Eu sei que já postei coisas demais sobre Che aqui nesse blog, mas essa é irresistível. Depois de criticar Barack Obama por matar uma mosca durante uma entrevista, a ONG americana PETA ("gente pelo tratamento ético dos animais") lançará uma campanha com uma modelo imitando a pose clássica do Che, mas vestindo apenas uma calça camuflada, uma boina bordô e uma bandoleira carregada de... cenouras.

Até aí (quase) nada demais. Mas a moçoila aí em cima tem 24 anos, se chama Lydia, é vegetariana e –tcha-rã! – neta de Che. O making-of da sessão de fotos está aqui.

A família tem alguns membros bastante públicos. A viúva do segundo casamento, Aleida March, acaba de lançar livro sobre a breve vida em comum que tiveram. Aleida e Camilo, dois de seus filhos, ela médica, ele documentarista, são entusiasmados apoiadores da esquerda latino-americana. Canek, neto do primeiro casamento de Che, é designer, roqueiro e vez por outra critica o regime cubano. Vive, como não é de se estranhar, entre Paris e Barcelona. Não sei de quem Lydia é filha, mas é um tanto estranho que a) seja argentina e b) more nos EUA.

Sarcástico que era, vô Che deve estar sorrindo.