18.11.04

O começo de las negras




No descanso de uma filmagem para a NHK em São Luis e Alcântara, gente dançando o tambor de crioula.

2.11.04

Jovens iranianos caem na gandaia

(publicado em NoMínimo)

“Lendo Lolita em Teerã” começa de forma prosaica. Azar Nafisi, sua autora e personagem principal, busca livros para a aula de literatura inglesa. Gatsby? Não. Lolita? Semana que vem talvez tenha uma cópia. Talvez. São todos autores proibidos, mas ela só pensa em conseguir os livros que, em breve, serão discutidos com uma pequena classe de alunas, em sua casa, algo clandestinamente.

É exatamente nesse trânsito entre prosaico e político – a política vivida mais rente ao chão, longe de idealismos e clichês – que “Lendo Lolita...” interessa. Por isso e porque concilia o dito “rente ao chão” com uma nada rasteira reflexão sobre o papel da arte na vida das pessoas: a metáfora de Lolita como sendo, essencialmente, qualquer ser humano vivendo sob o autoritarismo. O destino parece ter empurrado Azar Nafisi para esse jogo entre o rasteiro e o mais alto.

De uma família de intelectuais, voltou para o Irã logo depois da revolução. Saiu de lá nos anos 90, quando um cheiro de reforma parecia se apresentar - contramão que uma simples explicação não resolve, mas algo de que o livro dá conta com graça. De seu exílio voluntário em Washington, a escritora conta, por telefone, seu périplo através de uma revolução, um exílio e 50 semanas na lista dos mais vendidos de “The New York Times”, e garante que as festas da juventude iraniana hoje fazem tanto parte do jogo político quanto os protestos de sempre: “Esse é o campo de batalha”.

Não há uma certa ironia no fato de “Lendo Lolita em Teerã”, que começa mostrando sua busca frustrada por livros, poder ser achado, ser quase um best-seller, em toda parte?
Mesmo em Teerã cópias xerox são passadas de mão em mão! Que posso dizer? É a grande ironia da coisa. Mas veja, de certa forma, isso prova um ponto fundamental de “Lendo Lolita…”: as narrativas têm muito poder, muito mais poder do que a realidade. O que não consegui no Irã, consegui falando do Irã. A ficção é incontrolável, imperiosa. A ficção suplanta a urdidura da realidade porque só opera dentro da lógica que ela mesma estabelece. Ela rói o real.

Como a senhora descreveria a situação atual? Segundo a imprensa, o governo está duro como sempre. No entanto, quando se conversa com iranianos – principalmente os jovens –, ouve-se que o regime anda mais calmo no último ano e meio. Contam até que a polícia de costumes está aceitando subornos para deixar festas mistas correrem soltas.
A situação é arbitrária, não há dúvida. Como eu digo no livro, tudo são momentos de estiagem no meio do temporal. É verdade, as pessoas sentem menos medo agora, ainda que haja repressão. Um dos meus estudantes aqui de Washington voltou do Irã agora e disse que o regime está endurecendo de novo. O melhor é que os jovens de agora têm menos capacidade de sentir medo, esse medo que nos faria obedecer e nos esconder num mundo privado, interno. Esses jovens, que o regime chama de filhos da revolução, eles vão para a cadeia desde muito cedo – e por uma mecha de cabelo que sai do xale, por usar batom, por ouvir música americana. Eles perderam o medo.

Quais as conseqüências dessa falta de base popular do regime?
São duas: a principal é que agora há constantes divisões dentro do governo, gente que acaba se juntando aos setores independentes e assume uma posição crítica poder constituído. O segundo efeito, todavia, é que os setores duros do regime, bem, eles estão mais duros e fortes, tentam se agarrar ao poder. Fazendo um balanço, eu diria que o Irã é muito avançado em matéria de instituições culturais e sociais. São muito sólidas e resistiram a 25 anos de revolução. Dito isso, e lamento completar com o que vou dizer agora, acho que alguma dose de violência será inevitável. O regime achou que moldaria os filhos da revolução e uma forma que sabia que não conseguiria conosco – sempre fomos considerados casos perdidos (risos). Mas esses garotos não se moldaram aos “pais”, ou seja, ao regime. Eles estão se rebelando.

Mas que rebelião é essa que não se vê tanto nas ruas?
Não é nem algo institucionalmente político, como era com a minha geração, embora o seja de uma outra forma. Esses meninos não tiveram direitos individuais. É isso que eles querem, esse é seu campo de batalha. Claro! Liberdades individuais são impossíveis nesse regime.

Como se dá essa luta?
Veja as festas. Festas mistas, com álcool e sabe-se lá mais o quê (risos). São coisas que fico sabendo através de meus alunos e ex-alunos… Dávamos festas nos anos setenta, havia esse espírito, mas as festas de hoje são coisas que nunca imaginei (risos)!

Mas não há um perigo em reagir assim, uma certa inconseqüência?
O pior perigo é entrar nessa espiral de simples reação. Querer tudo que eles não te dão. Temos de ser mais críticos, ver coisas boas e ruins. Me lembro de quando deixei o país, uns sete anos atrás: eles não eram tão críticos como a minha geração foi. Víamos os EUA, por exemplo, de uma forma muito mais questionadora, a religião de uma forma mais branda. Hoje eles acham tudo que é americano maravilhoso e têm horror a religião, a coisa acabou trabalhando no sentido contrário ao desejado pelo regime. E nem acho que seja necessário, embora ache horrível quando a religião vira ideologia, como é nosso caso. O que quero dizer é que a pura reação é muito perigosa. Veja o que aconteceu com o fim da União Soviética!

Como vão suas alunas do grupo de estudo retratado em Lolita?
Duas delas estão aqui nos EUA e é bom vê-las dando conta de si mesmas. Uma coisa que acho muito curiosa é que esses meninos, quando vêm para cá, entendem melhor ainda esse ideário americano de cultivo da liberdade e busca da felicidade. Como o batom, o namorado, tudo leva à cadeia lá no Irã, eles parecem muito mais preparados a ver esses ideais por inteiro, valorizá-los quando estão aqui. Elas sabem o que é – adoro essa expressão e a usávamos muito em Teerã – a busca pela felicidade. Não se pode encarar essa tarefa de forma superficial, rasa, como vejo muitos jovens americanos fazerem. Há pessoas que morrem por isso em alguns lugares do mundo. A felicidade não é assistir a reality shows e Britney Spears.

Para quem saiu de um regime em que a dimensão pessoal é tão reprimida, a onda dos realities não chega a ser um choque bem-vindo, uma exposição do pessoal que é impossível lá?
Olhe, gosto das sitcoms porque posso ver a imaginação de alguém ali. Há alguém por trás daquilo, e isso é inegável. Mas, nos realities, me incomoda essa dimensão voyeur, abelhuda, que é praticada. E todo mundo está nisso: Donald Trump, Paris Hilton…

Muitos traçam um paralelo entre essa exposição do pessoal nos realities e a que acontecem nos blogs de Internet. Seria a manifestação de um interesse contemporâneo pelo comum, pelo cotidiano.
Mas acho que há uma enorme diferença! Nos blogs, você não vê a pessoa, não há essa dimensão corpórea. Também há uma interface ali que não é só gráfica, é criativa, constrói-se algo ali. Presto cada vez mais atenção nisso. É uma ferramenta genial, que pode ser usada ou abusada, como todas, mas me encanta o uso que ela pode ter para se discutir e debater coisas. Os iranianos estão ocupando esse espaço, usando a Internet como fórum para discutir o privado. É fundamental discutir o privado com os outros. Assim como a democracia, os direitos humanos. Isso tem de passar também à esfera pública, principalmente no Irã.

Mas os blogs são o bastante?
Não, você também precisa da presença física. Precisa-se estar lá. É diferente. Mas é uma saída intermediária. Os blogs são muito úteis, são um lugar onde o regime não entra. O ruim é que em algum momento você precisa passar da discussão para a prática. Aí é que acontece a frustração, porque você acaba vivendo numa terra de sonhos. As aulas retratadas no livro eram assim também. Mostrávamos nossas roupas umas para as outras, discutíamos amores, debatíamos política. O mundo fora do quarto passava a ser quase irreal, etéreo para nós. E o baque, quando “voltávamos”, era sempre enorme.

De volta ao mundo real, novas eleições presidenciais acontecerão no Irã em breve. Em 2001, você disse que seria bom que os iranianos, mesmo os jovens, votassem em Mohamed Khatami para verem que ele não mudaria nada. Que o voto, em última instância, não mudaria nada.
As pessoas já mostraram esse desencanto com os reformistas nas últimas eleições parlamentares. A fé no voto está indo embora, se desmanchando. Espero que a fé numa saída pacífica, gradual, em direção à democracia não desapareça junto. Khatami me desapontou muito: falsificou uma suposta reforma desenhada para não mudar nada. Há outros fatores: a juventude quer festa, alguns se preocupam em ganhar dinheiro, não é “política” per se. Tem, claro, um fundo político, mas o voto não é mais tão importante na atual conjuntura.

O que se fez das meninas dentro do grupo de estudos?
A maioria está no exterior. Uma chegou aqui aos EUA mês passado. Uma está na Califórnia, outra no Canadá… uma virou editora. Editora em Teerã. Mas essa eu nunca achei que sairia do país. É Mashid.

Editar livros em Teerã não parece combinar com uma menina que era descrita pelas outras do grupo como feita de porcelana.
Estou muito orgulhosa por ela. É maravilhoso como ela agüentou toda a pressão vinda de cima, de seu chefe, da empresa, daquele entorno todo. Está publicando livros!

Seu trabalho é muito ligado ao de Marjane Satrapi, autora de “Persépolis”. A senhora vê esses paralelos?
Ambas narramos. Narramos a distância, em mais de um sentido. Eu, por exemplo, não queria que “Lendo Lolita...” fosse tanto uma memória minha quanto acabou sendo. Já Marjane impõe essa certa distância de um jeito fabuloso, com aquele humor ácido. E de forma altamente inesperada, tanto no Irã, onde sequer se considera fazer quadrinhos com aquela profundidade, como aqui no Ocidente. Há um problema com a maioria dos livros sobre o Irã. É que eles são – todos – muito sérios e sisudos. E Marjane escolhe justo os comics para retratar aquelas situações aterradoras. É sensacional.

O uso do humor torna a situação mais real?
Sim, claro. Ocorre um fenômeno curioso: as pessoas que me entrevistam geralmente têm muita dificuldade em lidar com isso, com o humor e com situações intermediárias. Eles querem juízos. Me perguntam: “Mas a situação no Irã vai melhorar ou piorar?”, “O regime é bom ou mau?”. E a coisa, definitivamente, é muito mais complicada.

Como assim?
Houve um caso espetacular, o da comédia “O lagarto”, um filme sobre umladrão que se faz passar por um clérigo. As autoridades do país deixaram o filme ser feito, mesmo sabendo do que se tratava. Então, quando a comédia estreou, com aquele conteúdo explosivo, abriu-se uma polêmica enorme. Proibiram o filme. Mas aí é que ele fez ainda mais sucesso! Todos queriam
saber que comédia era essa.

18.5.04

Jihad

(uma versão dessa matéria foi publicada no Idéias)

Jihad
De Gilles Kepel
Bibliex
576 pgs

Onde quer que se esconda no momento, Osama bin Laden deve estar satisfeito. Vendo os noticiários internacionais, provavelmente sorri ao assistir a Casa Branca correndo atrás das redes de televisão árabes para lamentar ou pedir desculpas pelos abusos cometidos por soldados americanos na prisão iraquiana de Abu Ghraib.

Contente, sim. Mas surpreso, a se crer no profético Jihad, do francês Gilles Kepel, não.

Uma das principais teses defendidas por Kepel em seu livro é que toda a atual estratégia do saudita desde os ataques de 11 de setembro se baseia no trinômio provocação-repressão-solidariedade. De forma mais alongada, o autor classifica os ataques a Nova York e Washington como uma grande provocação, feita sobre medida para gerar uma reação repressiva por parte dos Estados Unidos. E os chamados “danos colateriais” – os civis agredidos, as crianças aleijadas por bombardeios, os presos em Abu Ghraib – se incumbem de granjear a solidariedade de boa parte do mundo. Como se vê, já estava tudo escrito no livro de Kepel, lançado originalmente na França em 2000, antes dos ataques, portanto.

A tese, que é tão questionada quanto atentamente ouvida por quem estuda o Oriente Médio, demonstraria que o homem que passou mais da metade de sua vida em barracas de campanha é dotado de um sofisticado pensamento estratégico. É como se, sentado em alguma localidade poeirenta do Afeganistão, quatro anos atrás, Bin Laden tivesse em suas mãos calhamaços de pesquisas de opinião onde o antiamericanismo batia índices altíssimos e crescentes. Como se houvesse lido cada relatório reservado da diplomacia européia e mundial falando da petulância e unilateralismo do então novo presidente americano, George Bush. Como, também, Bin Laden dominasse tranquilamente toda a teoria de mídia produzida pelos pensantes ocidentais no século passado – de Goebbels a Chomsky, de Adorno a Guy Debord, passando por Stalin, Mandela e Gandhi – para calcular suas ações, buscando o maior impacto possível. Pode-se chegar a dizer que Bin Laden escolheu a mídia como campo de batalha preferencial ao planejar seu ataque ao “império”.

As razões fazem parte de uma outra história, essa ainda mais polêmica: Kepel interpreta os ataques aos Estados Unidos como um desesperado gesto para unir o mundo muçulmano, hoje uma legião heterogênea de um bilhão de fiéis, maior que a do cristianismo, em torno de um ideal.

Que ideal seria esse? A resposta de Kepel é que Bin Laden quer chegar ao poder ou, ao menos, ver elementos alinhados à sua filosofia chegarem ao poder. Na prática, isso não parece sequer próximo de acontecer. No chamado “mundo muçulmano”, há apenas três situações em que parece haver mudanças políticas no núcleo do poder a vista: duas delas, Afeganistão e Iraque, por obra e graça da invasão americana; na terceira, no Irã, há sinais continuados de que, se a mudança acontecer, os vitoriosos serão os moderados e os seculares, não os radicais.

Olhando pelos prismas oferecidos por Kepel, não é difícil ver porquê o espatifar gigantesco dos aviões contra as Torres Gêmeas não se traduziu até agora na tomada do poder. Embora angarie toneladas de solidariedade mesmo dos não-muçulmanos, o saudita se afastou perigosamente das bases do movimento islâmico. Ao contrário do que aconteceu no Irã pré-revolução islâmica, Bin Laden nunca conseguiu construir uma base ativista ampla. Quer por seu radicalismo, quer pela oferta/ameaça do martírio, a Al Qaeda tem poder reduzido para atrair a juventude pobre e sem perspectivas das cidades, os comerciantes pios dispostos a financiar a causa ou mesmo a classe média de convicções quase seculares, setores que garantiram, por exemplo, a subida do aiatolá Khomeini ao poder.

A revolução iraniana, aliás, é o único caso de sucesso dos movimentos radicais islâmicos lembrado por Kepel. Os fracassos, por outro lado, são muitos. No Egito, a Irmandade Muçulmana, que no início dos anos 80 parecia destinada a dar as cartas no Norte da África, errou ao radicalizar seu discurso e ações, isolando elementos mais moderados que poderiam ao menos ser úteis. No Paquistão, os radicais se incrustaram nos altos escalões do governo. Foram os principais incentivadores dos talibãs afegãos, assim como os EUA, em certa época. Mas bastou serem forçados a uma decisão – logo após os ataques de 2001, quando Bush declarou que quem não estava com a América estava contra – para o moderado general-presidente-primeiro-ministro Pervez Musharraf ganhar a disputa.

É um giro de argumentação ambicioso, o que Kepel propõe. Professor do Instituto de Estudos Políticos de Paris, parece ter as credenciais para ter essa audácia. Desde seu primeiro trabalho, Les Prophetes et Pharaon, sobre os extremistas egípcios, o islamismo é seu foco. Graças a sua fluência em árabe – algo menos costumeiro entre os que estudam a região do que se pode supor – pode contar com a colaboração de mais de uma dezena de centros de estudos políticos no Oriente e citar centenas de periódicos árabes obscuros em seus trabalhos.

Jihad, além de uma ampla, bem escrita e fartamente documentada história do extremismo islâmico nas últimas três décadas, relê o homem mais temido do mundo hoje como o representante de uma corrente política no fim de suas forças, disposto a gestos desesperados para relançar sua causa. Adicionalmente, retrata o mundo muçulmano atual não como um emaranhado pétreo de ditaduras, mas uma peneira cada vez menos eficiente em tampar o sol de mudanças democráticas ainda a germinar, mas já plantadas. São visões inusitadas sobre a região que monopoliza as atenções do mundo há três anos, que Kepel esgrima com segurança e serenidade incomuns.

14.2.04

Sherazades tiram véu de silêncio


Marjane Satrapi, em autoretrato

(Publicada originalmente no Idéias, do JB)

Reading Lolita in Tehran
Azar Nafisi
Random House, 238 páginas
US$ 13,95

Persepolis
Marjane Satrapi
Pantheon, 160 páginas
US$ 12,57

O primeiro é um ensaio sereno e sofisticado, crivado de referências literárias. O segundo, uma ácida história em quadrinhos feita a partir da ótica de uma criança. Contudo, a distância entre Lendo Lolita em Teerã, de Azar Nafisi, e Persepolis, de Marjane Satrapi, não poderia ser menor. Tão diferentes quanto complementares, as duas memórias (que serão publicadas este ano no Brasil) abordam a vida de suas autoras durante a Revolução islâmica do Irã, que completa 25 anos este fevereiro, numa fase de instabilidade com poucos precedentes.

Persepolis retrata em forma de quadrinhos a infância e adolescência de Marjane no Irã, entre o fim da década de 70 e o início da década de 80. A autora diz que o livro registra as histórias que, por anos, fascinaram amigos e colegas: as polícias de costumes, os mísseis iraquianos, os jasmins que sua avó guardava dentro do sutiã para ficar cheirosa. Depois do sucesso – 150 mil cópias na França, 40 mil nos EUA e uma sucessão de prêmios – já estão sendo finalizados mais dois volumes, que retomam a história do abrupto ponto onde parou. Já Lendo Lolita… mistura análise literária sobre Nabokov, James, Austen e outros com as memórias do período em que Azar, uma professora de literatura inglesa, mantinha classes clandestinas em casa com um seleto grupo de ex-alunas.

O véu, por coincidência, é o ponto de partida das duas histórias. Para Azar, ele funcionou como uma senha. A exigência, por parte de seus superiores na Universidade Allameh Tabatabai, de que usasse o hejab durante as aulas foi o sinal de que os tempos haviam mudado demais. Desligou-se da universidade e passou a reunir em sua casa um grupo tão interessado quanto heterogêneo de alunas para discutir grandes obras da literatura ocidental. Já em Persepolis, é o véu que torna palpável para Marji toda a reviravolta cultural imposta pelos ciosos mulás: sem saber exatamente por que cobrir os cabelos com aquele pano espesso e negro, Marjane e suas colegas do liberal (e agora extinto) Liceu Francês transformavam o hejab em corda de pular, fantasia de monstro – ou simplesmente jogavam-no no chão.

E é exatamente essa sanha infantil de reinventar elementos da realidade circundante (ou mesmo de abandoná-los, suprimi-los) que os quadrinhos de Marjane flagram com boa mira. Num momento, ela festeja a derrubada do xá entronado pelo Ocidente; noutro, odeia o regime por não permitir turmas de meninos e meninas; num terceiro, quer alistar-se, aos 11 anos, para lutar por seu país na guerra com o Iraque. Da mesma forma, diz ser o novo Messias e recebe Alá para conversas ao pé da cama – apenas para venerar Che Guevara e ler avidamente uma versão em quadrinhos do Materialismo dialético no instante seguinte. A grande diferença entre Karl Marx e o Altíssimo, conclui ela num certo ponto, é que o cabelo do primeiro é mais encaracolado.

Mas é um engano confundir a inocência da personagem com a da autora. Um humor por vezes ácido permeia todo o roteiro que, se à primeira vista parece linear em excesso, tem pontos de tensão, drama e comédia magistrais. Nesse sentido, os desenhos de Marjane – radicalmente monocromáticos, lembrando muito as xilogravuras do nosso cordel – servem como metáfora perfeita do que parece ser seu método. O preto-e-branco, assim como o ponto de vista pretensamente infantil, serve para descarnar e expor os cinzas de uma realidade complexa, não distorcê-la ou mascará-la. Diz muito, por exemplo, o fato de ela não citar sequer uma vez o nome do aiatolá Ali Ruhollah Khomeini. Lendo Lolita… mergulha num mundo de cores mais vivas. A atenção da autora flutua sobre vários períodos, abandonando-se em digressões povoadas ora de anedotas, de memórias, de livros, ora de suas alunas. O colorido é também imposto às obras que são discutidas no grupo, talvez um dos itens mais interessantes do livro. É esclarecedor que ao fim da introdução Azar afirme que “não há como escrever sobre esse romance sem também escrever sobre Teerã. Essa, então, é a história de Lolita em Teerã, como Lolita deu uma cor diferente a Teerã e como Teerã ajudou a definir o romance de Nabokov, transformando-o nesse Lolita, nosso Lolita”.

Esse Lolita ao gosto das freguesas, aliás, está bem distante do clichê com que nos costumamos deparar em análises da obra: avaliações morais sobre o caráter tanto de Lolita quanto de seu algoz, Humbert, e a habilidade desse último em seduzir também o leitor. O que interessa nessa Lolita teeraniana é a forma deliberada e lógica com que Humbert molda e conta a história de “sua” pequena Dolores. É a dinâmica de uma vivência seqüestrada que Nabokov, através de Humbert, dá em conta-gotas ao leitor. O mesmo se repete quando Azar e suas pupilas analisam brevemente as Mil e uma noites. Se tanto a rainha quanto as virgens mortas pelo rei noite após noite não têm como reagir ao monopólio da violência detido pelo monarca, Sherazade e sua irmã se safam porque se posicionam de outra forma dentro das mesmas circunstâncias. Substituem a violência, plano em que o rei tem o domínio, por uma relação em que conta mais a criatividade que a força.

O mesmo sucede com as autoras de Lendo Lolita… e Persepolis, que tomam suas histórias nas mãos e provam que ler e lembrar podem ser gestos da contestação mais dura. Tem um sabor amargo, contudo, a constatação de que ambas só podem fazê-lo a partir do exílio, Marjane em Paris, Azar em Washington.