27.2.05

A menina de ouro da Maré



(uma versão dessa matéria foi publicada em NoMínimol)

Ganchos
Ela pula seguindo um ritmo que não se ouve. Quando sua mão encontra o saco pesado, o couro que envolve os cerca de 40 quilos de areia vibram como a pele de um bumbo. O saco oscila, ela gira em torno dele, quase se chocando com o menino de braço forte que faz o mesmo ao seu lado, apertados no pequeno ginásio. Não se ouve muita coisa. Só o xiq-xiq das luvas raspando no saco, as correntes que o prendem chacoalhando, e o uf-uf dos diafragmas quando um soco parte do ombro e bate seco no oponente que rebola ágil no ar. De longe, o treinador olha, braços cruzados, ombros pra trás, a testa baixa.

Não, aqui não é o Hit Pit do filme Menina de Ouro, com que Clint Eastwood pretende ganhar uma segunda estatueta de melhor diretor no ringue do Kodak Theatre. Estamos na favela de Nova Holanda, no Complexo da Maré, na academia do projeto Luta pela Paz, da ONG Viva Rio. Morgan Freeman não está aqui para, na pele de Scrap, narrador do filme, repetir à lutadora que “boxe tem a ver com respeito”. Mas não soa necessário. Todos parecem ter vindo para cá sabendo disso.

Ela, no caso, é Manuela Lopes da Silva, 18 anos, vice-campeã brasileira na classe dos 60 quilos. Uma menina de braços fortes e ombro estreito. Ela e mais cerca de vinte meninas, e mais uns 80 rapazes, vêm a esse ginásio três vezes por semana aprender a esquivar, respirar e dar socos. Entre outras coisas.

O projeto foi concebido por Luke Dowdney, que na sua Inglaterra natal foi boxeador e que, voluntariando no Brasil anos atrás, decidiu estudar e ajudar os jovens vivendo em favelas. Depois disso, Luke já foi condecorado por sua rainha e continua tocando outros projetos aqui. O Luta pela Paz já caminha pelas próprias pernas.

Entrando pela Avenida Brasil, passarela nove, é difícil achar a porta do Luta pela Paz. Fica entre uma mercearia e uma loja para animais. A porta, pequena, fica meio escondida por gaiolas à venda. Depois da porta, uma escada estreita e íngreme, coberta de azulejo, sobe até o ginásio propriamente dito. O ringue de treino domina o espaço pequeno e quente. De um lado há três sacos de pancada e alguns aparelhos de musculação, do outro um espaço livre com um espelho na parede. Pouco, além das poças de suor seco e pisoteado no chão, diferencia o espaço de uma academia comum. Na verdade, o espaço também é uma academia comum, atendendo à população das imediações que vem cuidar do corpo. Mas a janela de fora a fora, mostrando uma complicação de tijolos aparentes, antenas de tv e roupas penduradas, não deixa esquecer onde se está e porque.

Jabs
Sentada numa cadeira, muito antes da hora de seu treino, Manuela é uma adolescente tímida bastante comum. Sua história, na área, é realmente comum. Fez várias tatuagens no corpo, engravidou aos 14, e era, como ela mesma fala, “uma encrenqueira”. Uma vez brigou com uma menina da área que estava com medo de perder seu namorado. Tipo de confusão que os donos da área não gostam: atrai polícia e afugenta cliente. No dia seguinte, Manuela não tinha mais onde passar o gel wet look que costuma usar no cabelo. Sua cabeça brilhava no sol, raspada, “para aprender”.

“Olha, não vou mentir pra você. Quando eu entrei aqui, eu queria aprender a brigar mesmo. Aprender a dar socão. Mas demora muito, a gente acaba desistindo disso. Boxe é muito complicado, quem quer aprender a brigar vai pra rua e briga”. Hoje, segundo ela explica, luta cada vez mais e briga cada vez menos. Outra diferença da época em que só queria saber de baile e de zoar – “mas eu ainda gosto de baile, tá? Só não vou sempre” – é que agora ela voltou a estudar, como a maioria aqui.

A lógica do projeto – para a maioria das pessoas, boxe é coisa de gente violenta – parece funcionar. Todos que chegam para o treino, meninos e meninas entre 15 e 25 anos, parecem incrivelmente corteses. Cumprimentam a todos pessoalmente falando seus nomes a quem ao conhecem, contam piadas e riem baixo. Claro, há os que imitam Mike Tyson, mas a maioria apenas olha, quieta. E não há brigas na rua. Quem é pego boxeando fora da academia é expulso. Sem argumentação.

Claro que nada é perfeito. Pouca coisa aqui é, aliás. Leriana Figueiredo, coordenadora do projeto, conta que já houve os que deixaram o “movimento” pra boxear e hoje trabalham. Os que ficaram um pouco, ganharam experiência e disciplina e foram trabalhar. E os que largaram o tráfico, boxearam um pouco, e voltaram pro tráfico. “Nada é perfeito”, diz ela.

Cruzados
Do meio do burburinho de quem deixa o cinema, há casais chorosos com o final triste do filme de Eastwood, estudantes comentando as cenas de luta, Manuela e Leriana. Ela conta que chorou, mas não exatamente pela razão da maioria. “Quando vi aquela cena em que ela entra com o roupão verde pela primeira vez, aquela luta que ela vai pra fora, e o povo fazendo ‘huh-huh-huh!’, lembrei muito da minha primeira luta. Aí eu chorei...”

Ao som de Eye of the Tiger, tema do filme Rocky (segundo Manuela, música do baiano Acelino Popó de Freitas), Manuela entrou nervosa em sua primeira luta pra valer, num ringue em Belford Roxo. Tão nervosa que sua mão direita pifou. “Eu só conseguia manter a guarda. Fiz a luta toda só com a esquerda”.

Parece ser uma esquerda forte, porque Manuela ganhou todos os sets. “Eu quebrei a cara da menina! Ela ficou transfigurada mesmo”, diz ela, meio culpada, meio orgulhosa. “O problema dela é que ela não tinha nenhuma base, ficava com os braços baixos. Aí eu só entrava, só socão direto, no meio da cara”. Contam que a torcida da outra menina ficou com muita raiva, disseram que a luta foi armada, que Manuela só podia ser lutadora experiente. Enquanto ouve os outros completarem sua história, Manuela, ri escondendo o rosto incrivelmente liso para uma vice-campeã.

“Uma coisa que eu tenho boa é a defesa, a guarda. Nunca quebrei nem desloquei o nariz. Mas já sangrou sim. Quando a gente luta aqui, o melado desce!”, diz ela, rindo. “Uma parada que eu faço bem é assim: faço que vou com o ombro esquerdo e tum!, meto um cruzado com a direita. Não falha. Entra sempre”.

Manuela, contudo, prefere discordar de mais paralelos entre ela e a lutadora do filme. “Nossas famílias são diferentes, né? Não tenho aquela mãe horrível. Fui criada pelas minhas avós e uma tia. Meu pai morreu quando eu ainda tinha alguns meses, minha mãe, eu tinha quatro”. Hoje, ela é a do meio de três irmãs – seu irmão mais velho também foi morto, como a mãe. “O cara que matou a minha mãe, ex-marido dela, ainda está por aí. Fizeram nada”.

Diretos
Hoje, contudo, ela não pensa para trás. “Eu olho é pra frente”. E pra frente há Vítor Júnior, Vitinho para todos na academia, que o conheceram desde o começo dos treinos de Manuela, quando ele tinha quase um ano. Hoje, ele tem três anos, um par de ombros sólidos e soca o ar com as luvas da mãe. O quadro é comum a muitas das meninas que vêm aqui, apesar da doutrinação constante nas rodas de conversa que são parte obrigatória do projeto. Há uma boa lutadora que ainda está se recuperando do parto, querendo voltar, e outra, Juliana, a blusa amarela esticada pela barriga de sete meses e o decote estourando de leite. Depois, já virou rotina aqui, as crianças ficam no carrinho enquanto as mães treinam. Há vários protetores peitorais no vestiário.

Vítor pai é um dos monitores do projeto, boxeador também, e já foi vítima dos diretos do filho. “Ele já tirou sangue do nariz do Vitor”, diz Manuela, rindo. “Duas vezes!”. A relação de Manuela com Vitor começou antes do boxe, já com a gravidez de Vitinho, e passa por altos e baixos. Moram juntos mas, como diz Manuela, “vão e vêm”. Leriana, a coordenadora do projeto, diz que, na verdade, “esses dois se amam”.

O papel dos coordenadores do projeto é fundamental. Leriana e Mirian falam com um e outro, dão conselhos, broncas. Vão muito além da gerência de uma academia de boxe, das vagas pra arrumar em escolas próximas e das colocações em empresas que colaboram – não muitas, diga-se a verdade. Segundo elas, é esse trabalho miúdo, quase invisível, que determina se o projeto funciona ou não. “Não dá pra gente pensar só como um ginásio de boxe. Nossa prioridade aqui é que eles estudem. Mas é difícil manter o cartel. Muitos saem porque precisam estudar ou trabalhar. E, há pouco tempo, dois lutadores morreram”, explica Leriana, pra acrescentar, técnica: “projétil de arma de fogo”.

Num canto, Manuela “faz sombra” no espelho, dando pulinhos e socando o ar. A guarda parece estar alta.