11.9.02

EUA afiam suas armas

Silenciosamente, forças e bases americanas se preparam para derrubar Saddam

(Publicada originalmente no JB)

Na sexta-feira, tentando acalmar os ânimos da imprensa americana, que há duas semanas pressiona a Casa Branca a respeito da guerra contra o Iraque, um assessor do presidente George Bush afirmou que uma decisão definitiva poderia vir apenas em 2003. Na verdade, um significativo movimento de tropas e suprimentos, além da reforma de bases cruciais para a ofensiva, já está acontecendo enquanto imprensa e analistas internacionais debatem os prós e contras de se derrubar Saddam Hussein.

O quartel-general da 3ª Divisão de Infantaria Mecanizada foi transferido de Forte McPherson, na Geórgia, para o Kuwait. Esperando por ela, batalhões de soldados especializados em planejar a logística necessária para receber um contingente numeroso. Além disso, a 101ª Divisão Aerotransportada, a primeira a entrar na guerra em quase todas as situações, voltou - inteira - do Afeganistão. Seus homens podem estar em qualquer ponto do globo prontos para lutar em 36 horas.
Na base de Al Udeid, no Catar, os sinais também são claros: uma cidade de tendas brotou do chão desértico. Hangares foram reforçados e, em alguns casos, blindados. Cercas para proteger as tropas foram instaladas. Tudo foi documentado e fotografado por satélites comerciais e as imagens estão na internet.

Há um novo pensamento por trás da movimentação de tropas. Uma senha para entendê-lo é fornecida por John Pike, analista militar independente do centro de estudos GlobalSecurity: ''Os planos anteriores, como os da Guerra do Golfo, em 1991, visavam a derrota do Exército iraquiano, não uma mudança no regime'', diz Pike. A nova articulação foi confirmada por um oficial do Pentágono, que, mantendo-se anônimo, garantiu que o centro de gravidade da nova guerra não são soldados, mas o próprio Saddam.

A mudança ocorreu, segundo extensos rumores na imprensa americana, na semana passada: na quarta-feira, o chefe do Comando Central, general Tommy Franks, propôs algo próximo da Operação Tempestade no Deserto, que em 1991 expulsou as forças iraquianas do Kuwait: 250 mil homens e 15 esquadrilhas de ataque. Criticado pelos civis da administração Bush por sua ortodoxia, Franks ofereceu um segundo plano, apelidado de ''Guerra do Golfo Light'': não mais que 50 mil homens, extenso apoio de forças especiais e menos aviões.

Há um consenso a respeito do momento da invasão, fim de novembro para uns, janeiro e no máximo fevereiro para outros. O motivo é simples: os soldados dos EUA só suportariam as fardas herméticas que protegem contra ataques de armas químicas durante o inverno. Uma variável que certamente Saddam tem em conta.

17.8.02

Memórias de um guerreiro islâmico (e americano)



My Jihad
De Aukai Collins
Lyons Press
256 Páginas
Sem lançamento previsto no Brasil

(publicado originalmente no JB)

Pele muito branca, cabeça raspada, estranhos olhos azuis e uma longa barbicha ruiva que desce até a altura do peito, a figura de Aukai Collins tem mais de metaleiro que de mujahedin. Mas é exatamente isso que este americano de ascendência irlandesa é: um guerreiro santo - e americano - do Islã, que conhece os dois lados da guerra ao terror. Quantos já treinaram em campos financiados por Osama Bin Laden e colaboraram com a CIA e o FBI?

As cicatrizes de batalha estão em todo lugar: cauterizações, pontos e cortes distribuídos pelo corpo maciço, uma prótese mecânica que substitui o pé direito, perdido na explosão de uma mina terrestre na Chechênia, e, principalmente, um estilo de pensar e escrever que tornam as pouco mais de 200 páginas de My jihad - ''Minha jihad'' - uma leitura perturbadora.

Aukai, nascido no Havaí, criado na Califórnia, convertido num reformatório, e batizado em fogo na Caxemira, Afeganistão e Chechênia, narra no livro seu périplo de campo de batalha em campo de batalha, a camaradagem com os guerreiros do Islã, a decepção com o mundo dos fundamentalistas e também com os serviços de segurança americanos.

''A virada aconteceu depois que saí do reformatório e comecei a freqüentar uma mesquita, mais ou menos em 1992'', contou por telefone ao Jornal do Brasil. ''Uns cristãos trouxeram um bósnio para o nosso templo, mas para todos na mesquita ele era um mau muçulmano. Os sérvios tinham torturado o cara e os muçulmanos de lá lhe negaram ajuda. Foram os cristãos que o trouxeram para os Estados Unidos e para a mesquita. Disse a meus colegas que eles estavam loucos: 'Nós desapontamos esse cara, e não o contrário'. Foi então que decidi que precisava fazer alguma coisa.''

A ''coisa'' era a jihad, luta na qual o Alcorão ordena a todos os fiéis fisicamente capazes que se envolvam, se houver muçulmanos ameaçados em qualquer parte do mundo. Meses depois, Collins estava em Zagreb, tentando – em vão – partir para Sarajevo. ''Eu queria lutar'', diz.

Collins sobreviveu para contar

O americano terminou aceitando o convite de um amigo e rumou para Karachi, no Paquistão, tendo o território disputado da Caxemira como destino. Depois de algumas patrulhas, rumou, junto a um grupo de árabes e paquistaneses, para o Afeganistão.

Lá, conheceu Omar Said Sheikh, um dos assassinos do repórter do Wall Street Journal, Daniel Pearl. Sheikh, hoje preso, já pensava em ir para a Caxemira e fazer reféns, afirma Collins. ''É nesse ponto que eu paro. Vou para a linha de frente, para a luta aberta, mas não faço isso. O Islã proíbe o ataque a civis'', diz.

Nessa época, Collins treina num campo financiado por Bin Laden, mas seu projeto, defender os muçulmanos contra os comunistas no Tajiquistão, falha. Volta, então, para os EUA e, em 1995, vai para a Chechênia. Luta, mata, casa-se, tem um filho – Saifudeen – e perde a perna.

Tantas experiências bizarras dão à voz de Collins uma serenidade e placidez estranhas. Não combinam em nada com o corpo largo de jogador de futebol americano. O tom se mantém no texto, numa maneira quase insensível e seca de narrar episódios hediondos. Collins não poupa o leitor dos detalhes de batalhas, do tédio das viagens, das mortes – de quase nada. É um texto que deve ser encarado não como vindo da caneta de um autor típico, mas de um Jack London ou outro escritor de aventuras. Tanta aridez por vezes realça trechos de ironia mórbida.

Tome-se o exemplo da passagem em que Collins conta seus primeiros dias num campo de treinamento na fronteira paquistanesa da Caxemira: ''Um dia estava sentado numa borda da clareira do campo quando um de meus colegas me chamou. Explicou que o comandante Khalid queria me ver. Deve ser algo importante, pensei. Quando entrei em sua tenda, ele estava sentado em almofadas, ao lado de um assistente. 'Sente-se', falou ele, sério, em inglês. Pensei que estava com problemas. 'Sim', disse. Sim o quê? Decidi rir. Então ele levantou sua perna amputada. Tinha posto no coto uma meia preta com dois olhos brancos desenhados. Parecia a cabeça de uma ovelha. Então, seu assistente começou a cantar. 'Ba, ba, ovelha preta, você tem alguma lã?', cantava ele com um forte sotaque urdu. Khalid mexia a perna como se fosse a ovelha que cantasse. 'Sim senhor, três sacos grandes!'. Fiquei olhando aqueles dois homens estranhos. Os olhos do assistente brilhavam. No fim da música, os dois urravam de tanto gargalhar.''

Collins acerta na organização do livro. A primeira parte contém suas idas e vindas no mundo da jihad internacional, partindo de um reformatório em San Diego para o encontro dos homens de Bin Laden, nome a que os americanos se habituaram depois de 11 de setembro. A terceira fala de seu período na Chechênia, concentra o grosso da ação. É na segunda que o brutamontes revela sensibilidade, ao contar, em magras páginas, sua infância e juventude. As frases se alongam, um adjetivo surge aqui e ali, e Collins se permite refletir enquanto escreve. Os parágrafos que narram o assassinato de sua mãe – que terminou boiando num pântano próximo de casa, ''suas mãos longilíneas comidas pelos pequenos caranguejos que eu pescava com um puçá'' – têm uma cor dolorida e intensa.

O estranho Collins agora espera o dinheiro dos direitos autorais do livro num pequeno apartamento em Baltimore. ''Minha vida anda uma m... total'', diz. Mas voltaria para a Chechênia, por exemplo? ''Claro, assim que conseguir o dinheiro'', afirma rápido. ''A Chechênia é um lugar tão legal!''

24.7.02

''Sei que vou ser criticado''

Sérgio Vieira de Mello fala dos desafios que o esperam como alto comissário para Direitos Humanos

(Publicada originalmente no JB)

Confirmado ontem pela Assembléia Geral da ONU como o novo Alto Comissário para Direitos Humanos da organização, o brasileiro Sérgio Vieira de Mello ainda aborda com cautela a missão que tem à frente. Sabe, contudo, que o cargo que ocupará a partir de setembro é um dos mais espinhosos das Nações Unidas. Vieira de Mello, que dirigiu a missão da ONU no Timor Leste, conversou por telefone com o Jornal do Brasil, de sua casa, em Nova York.
- Qual a sensação de ser incumbido de uma tarefa como essa?
- É semelhante ao que senti quando cheguei a Timor Leste. Agora começo a me dar conta da extensão, do desafio e da responsabilidade que levarei nos ombros a partir do dia 12 de setembro. Tenho plena noção da dificuldade inerente a meu posto e da multidão de problemas concretos, teóricos e práticos, com os quais vou me defrontar. As próximas semanas serão, sem dúvida, de aprendizado.
- Quais são as maiores questões relativas aos direitos humanos hoje?
- É difícil ser específico agora. Direitos humanos é quase tudo. Respirar é um direito humano, direito à vida. Mas há o perigo da diluição, da dispersão. Uma das minhas principais tarefas será priorizar. Identificar as áreas que devem ser abordadas primeiro. Não se deve dar atenção apenas à promoção da teoria dos direitos humanos, mas também às situações em que os direitos se encontram ameaçados ou cerceados. Se for me pautar pelas emergências políticas ou humanitárias, posso estar negligenciando outros aspectos. Não quero fazer isso antes de pedir conselhos a minha colega Mary Robinson.
- Robinson deixa o cargo com boa reputação entre defensores dos direitos humanos, mas criticada por vários governos. O que o senhor acha que mudará com sua entrada?
- O que muda são as personalidades. Cada um tem seu estilo, seu enfoque. O meu não será idêntico ao dela, mas certamente vou me beneficiar de tudo que ela realizou. Mas meu cargo tem muito daquilo que os ingleses chamam de no win situation. Não se pode agradar a todos. O que vou tentar fazer, e não digo que vou ter mais êxito que Robinson, é complementar o trabalho do secretário-geral Kofi Annan. Quero evitar também a hiperpolitização de alguns temas de direitos humanos e encontrar áreas de consenso. Sei que vou ser criticado por uma ou outra parte. Isso é parte do meu cargo por definição.
- O senhor tem idéia de quais seriam os pontos de tensão?
- Seria precipitado mencioná-los agora. Minhas prioridades serão conhecidas na prática, não necessariamente em declarações públicas.
- Há alguma mudança no contexto de sua atividade após os atentados de 11 de setembro?
- Os atentados são um divisor de águas. Os métodos usados pelos terroristas ultrapassaram tudo o que podíamos imaginar. Mas também o combate a estas novas formas de terrorismo cria um desafio para a promoção dos direitos humanos. É preciso criar salvaguardas. A promoção desses direitos deve ser feita de forma a tornar impossível o recurso a atos insensatos como aqueles.
- O senhor acredita que, com sua nomeação, haverá mais dedicação do Brasil à proteção dos direitos humanos?
- O Brasil desenvolveu na última década uma nova consciência, importantíssima, sobre o assunto. Sabemos, contudo, da dificuldade de transformar a teoria em prática num país tão grande e jovem como o nosso. Como alto comissário, não posso tratar de um país em particular, muito menos o meu. Mas é óbvio que, por ser brasileiro, desenvolveremos um diálogo com Brasília. Espero que me apóiem com idéias e sugestões. E também que me ouçam quando for preciso expressar algum ponto de vista ou alguma preocupação. Sei que o Itamaraty estará aberto a isso.
- Finalmente, qual seu balanço da transição para a independência que o senhor comandou em Timor Leste?
- Foram dois anos e meio excepcionais no sentido original da palavra: fora do comum. Timor foi diferente de tudo que a ONU já fez. Encontramos um país em ruínas e o deixamos com novas instituições. Instituições ainda frágeis, mas o país é seguro, estável e, principalmente, tem consciência de sua própria responsabilidade de levar adiante e consolidar o que se construiu até aqui. Entregando as chaves de meu gabinete ao presidente Xanana Gusmão, não houve um corte, mas continuidade. Tudo que conseguimos foi fruto do trabalho conjunto com os timorenses, seguindo sempre o que eles quiseram, o que é mais importante.

22.4.02

Morte e vida palestina

(publicada no JB)

Moradores de Ramala aprendem a conviver com tanques, medo e tédio

Ovos. A maior preocupação do senhor Jumah naquela tarde era a dúzia de ovos que ele levava com cuidado entre os escombros de prédios que agora complicam o trajeto da casa de sua mãe à sua própria. De repente, o senhor de 50 anos estanca, de frente para dois tanques igualmente imóveis. É de novo uma criança com medo e uma dúzia de frágeis ovos, um tesouro nas atuais circunstâncias, nas mãos: ''eles me mandaram voltar. Voltar pra onde?'', exclama, afinando a voz.

Jumah, que mora em Betúnia, uma das localidades que compõem a Grande Ramala, não dá o primeiro nome. Assim como ele, uma multidão anônima, em torno de 150 mil pessoas, vive há mais de três semanas sob bloqueio militar israelense, entre cinzeiros cheios, o aparelho de TV, os cantos das janelas, livros lidos sem muito interesse e uma mistura desagradável de medo e tédio.

''É quase a mesma coisa que uma prisão, só que na sua casa. Você perde o senso de tempo, esquece em que dia está e só olha para o relógio quando sabe que está chegando a hora de suspenderem o toque de recolher'', conta o estudante de engenharia Badawi Qawasmi. ''Nos primeiros dias, ficávamos assistindo os tanques, vendo se os soldados iam parar na frente de casa para nos pegar. Além disso, víamos muita TV e ouvíamos rádio - se bem que depois de uns dias as estações foram saindo do ar. Quando acabava a luz, jogávamos cartas. Depois de dez dias já não agüentava mais nada disso''.

Foi aí que Badawi e os irmãos começaram a tirar os livros da prateleira. Primeiro, para adiantarem as leituras da faculdade ou os deveres do colégio. Depois, para se desligarem da realidade. ''Peguei meus livros do curso de francês e estou pelejando para ler. Chateaubriand, Baudelaire, o que tiver''.

Um dos poucos acontecimentos a quebrar a modorra é quando os soldados anunciam através de megafones o levantamento do bloqueio, geralmente entre uma e quatro da tarde. É hora de correr para comprar farinha, água, legumes, remédios. O pão sai só às vezes, mas sempre fresco, porque o padeiro é liberado antes de todos para esquentar o forno, abrir a massa e preparar as bandejas.

Uns aproveitam para alimentar o espírito. ''Sexta-feira consegui ir à mesquita'', conta o senhor Jumah. ''A daqui é uma das poucas onde ainda há xeques para dar sermões. Muitos foram mortos ou presos – a maioria é do Hamas. Estão tendo cuidado com os discursos. Os soldados podem estar ouvindo''. Outros são mais mundanos. Hasan, filho de Jumah, por exemplo, foi para um ciber-café próximo ler os jornais e mandar e-mails para os amigos e para a namorada que ele tem visto pouco, por razões óbvias.

Depois de 21 dias, o dinheiro para pagar tudo virou problema. Quem tem salário mensal ajuda os diaristas e os que vivem de semanada. Os que têm poupança já se preocupam e os que não têm apelam para as agências humanitárias que circulam pela cidade levando cestas básicas com farinha, leite em pó e frangos. Segundo Jumah, quem tem dinheiro divide, quem paga aluguel está perdoado e quem precisa de remédio pede.

As poucas horas na rua não chegam a ser calmas. Os soldados estão em todo lugar e os tanques já tem uma linguagem própria. A torre vai da esquerda para a direita. É um ''não''; o canhão para cima e para baixo é um ''sim''. Na dúvida, uma mão sai de dentro da escotilha e acena um gesto meio ininteligível. No último estágio, os soldados dentro da máquina falam pelo alto-falante algo em árabe ou hebraico.

A tensão chega ao pico no início e no fim do período de liberdade. Diversas pessoas já foram baleadas por ainda estarem na rua durante o toque de recolher. Ontem um adolescente de 15 anos foi morto por pôr os pés na rua três minutos antes do permitido, segundo Badawi. A confusão é maior porque os horários são estabelecidos pelo fuso israelense, uma hora mais tarde que o da Autoridade Palestina. No fim da tarde, as pessoas voltam para casa carregando sacolas e contando as novas. Então segue-se mais horas de tédio, ar contaminado e falta de sono.

''Pode me ligar mais tarde'', diz Badawi, pouco antes de se despedir, depois de quase uma hora de entrevista e alguns minutos antes da meia-noite palestina. ''A gente dorme a qualquer hora, pode me acordar''.

7.2.02

Blair e Bush entre o Nobel e o belicismo

Venda de armas à África arranha indicação para Academia

(Publicada originalmente no JB)

Comandantes de um tempo de guerra, o americano George Bush e o britânico Tony Blair foram indicados para o prêmio Nobel da paz. A indicação veio de um membro da ultra-direita do governo norueguês, Harald Tom Nesvik. O parlamentar do Partido do Progresso afirma que os dois atendem perfeitamente o critério criado por Alfred Nobel, determinando que o vencedor deve ter feito ''o melhor trabalho pela fraternidade das nações, pela abolição ou redução dos Exércitos e pela promoção da paz''. Segundo Nesvik, ''às vezes você tem de usar de força para garantir a paz'', numa referência à chuva de bombas contra os terroristas nas montanhas do Afeganistão.

O anúncio soa ainda mais estranho nessa semana, quando Bush propôs o maior orçamento militar desde a Guerra Fria e Blair, a caminho da África num safári político, é alvejado em casa e no exterior pela postura dúbia de seu governo quando desenvolvimento e armas se misturam.

Afinal, como explicar que um pacifista tenha autorizado apenas nos últimos três anos um aumento de 400% nas vendas de armamentos para governos africanos, continente onde há mais guerras civis que se possa contar, ditaduras a granel e miséria sobrando? Embora as vendas não pertençam ao governo inglês, mas a empresas particulares, Downing Street tem de dar seu visto em cada uma delas.

Retórica - O problema seria menor se Blair evitasse declarações como as feitas na última convenção do Partido Trabalhista - quando prometeu ''socorrer os famintos, os miseráveis, os ignorantes, os que passam necessidade e vivem na imundície'' - e admitisse abertamente que seu país vende cada vez mais armas para o continente africano, que ele mesmo define como ''uma cicatriz na consciência do mundo''. Estaria apenas tomando a atitude típica de liberal, longe de ser o pior pecado no país.

Em 1999, as vendas passaram US$ 70 milhões, em 2000 saltaram para US$ 176 milhões e no ano passado chegaram a US$ 280 milhões, segundo o Campaign Against Arms Trade, que luta para impedir a venda de armas. Boa parte desse bolo é referente à venda de caças leves de ataque Hawk para a África do Sul, mas o acordo que está levantando mais polêmica - não só entre ONGs que discordam da política do governo, mas entre os lordes e o público - é mesmo o caso da Tanzânia.

Um contrato no valor de US$ 40 milhões foi fechado entre o governo do país africano e a BAE Systems para a construção de um sofisticado sistema de radares militares. Apesar da pobreza do país, da desaprovação explícita do Banco Mundial e de regras da União Européia que, se adotadas, poderiam minar o negócio, Blair aprovou a venda. ''A coisa toda fede'', disse um funcionário do governo ao diário The Guardian.

Em tempo: a Tanzânia têm oito aviões militares e uma renda per capita de US$ 500.