28.1.06

Esgrimistas da palavra

O livro "Duelos no serpentário" reúne 16 polêmicas deliciosas do passado. Mas onde elas andam, hoje?


(Publicada originalmente no Prosa & Verso, O Globo)

O querido leitor não terá se esquecido da última polêmica a aparecer nos jornais, opondo um renomado poeta e um funcionário do Ministério da Cultura. Ferreira Gullar criticou a atuação do governo na cultura, o jornalista Sérgio Sá Leitão (secretário de Políticas Culturais do MinC) o chamou indevidamente de stalinista e armou-se o circo. Entrou cantor, cineasta, o diabo. Mas, convenhamos — já que estamos a falar do mal-falar, espezinhemos também — é um circo pequenininho, de cidade de interior, de um leão só.

A grande polêmica, parruda e longa, com puxões de cabelo de sérias implicações e dedos-no-olho geniais, essa anda sumida. Existe, mas começa prometendo e murcha rápido, depois de uns tapinhas. Por isso é tão delicioso para os instintos azedos ler “Duelos no serpentário”, da G. Ermakoff, onde o editor George Ermakoff e o criador de poemas e de caso Alexei Bueno colecionam polêmicas intelectuais de 1850 a 1950.

A impressão que se tem é que se discutia à farta, semanas, meses, numa época em que tudo era à pena e à chumbo, e sobre qualquer coisa. No tijolo bom de ser arremessado há quase 800 páginas de parnasianos achincalhando simbolistas, senadores respondendo a poetas senis, modernistas devolvendo desaforos, escritores garimpando erros de português no opositor, muitas vezes sem qualquer correção política e sempre com verve.

— O que realmente é empolgante no debate desses caras é que eles tinham uma cultura enorme — conta Bueno. — Tanto que no livro há algumas polêmicas em que simplesmente ignoramos o outro lado, se não era literariamente interessante. Ademais, dá sempre para saber o que o outro disse pelas rebatidas.

O escritor Antônio Fernando Borges, que também entra em pelejas ocasionais (meio a contragosto, diz) concorda, e por razões quase antropológicas:

— O Agripino Grieco (parte de suas críticas a Machado de Assis estão no livro, aliás) é um prazer de ler, porque é culto e engraçadíssimo. Não concordo com 80% do que ele diz, mas é fantástico ver um homem inteligente pensando.

Tome-se como exemplo o boxe entre Carlos de Laet e Camilo Castelo Branco, português que nunca pisou no país no sentido literal, mas sempre fazia questão de fazê-lo no figurado. Em 1879, o último elaborou uma antologia “do contra” de poetas de então, apontando sem dó erros de português, métricas mancas e construções de catálogo. Laet se condoeu e vestiu-se em armas, catando na obra do próprio Castelo Branco uns quantos “houveram” e outras batatadas idênticas às que criticou. O português não se abalou. Escudando-se em gramáticos eméritos, questionou cada um de seus pretensos erros — inclusive os “houveram” — e espinafrou Laet. Para arrematar saiu-se com a seguinte:

“Os senhores escritores brasileiros, que me enviam preleções de linguagem portuguesa, se me quiserem obsequiar dum modo mais significativo e proveitoso, mandem-me um papagaio, uma cutia e alguns frascos de pitanga. Quanto à linguagem, muito obrigado, mas não se incomodem”.

Mas enquanto boa parte dos embates do livro gira, com graça, é certo, em torno de questões longe de prementes, Bueno, Borges e ainda o escritor Silviano Santiago garantem que a peleja é uma cutia em extinção — e que isso é ruim pra vida intelectual.

Idéias em choque, idéias em movimento

Alexei Bueno define o problema de forma simples:

— Falta incômodo, falta base e sobra covardia — define ele, investindo sem qualquer hesitação contra dois polemistas, um popular e outro já canonizado. — O Diogo Mainardi é despreparado, chamar isso que ele faz de polêmica não é sério. O modelo dele, assumidamente, é Paulo Francis, outro despreparado, tido como uma sumidade, quando era um cara com lacunas gritantes de cultura. O tipo de coisa que só cresce como cresceu num país de analfabetos. Tenho recortes guardados se você quiser ver: ele não sabia a diferença entre verso e estrofe! — diz o poeta, soltando adequados rolos de fumaça de cigarrilha pelas ventas.

Antonio Fernando Borges comenta com endereço pensado a existência da “profissão polemista”, gente que só faz isso.

— Polêmica é uma coisa circunstancial. Monteiro Lobato não era polemista, nem José de Alencar, Sílvio Romero, Rui Barbosa ou Mário de Andrade.

Entrando no debate só agora, pelo décimo oitavo parágrafo, o escritor Silviano Santiago comenta a polêmica e, impavidamente, cria uma:

— Nunca houve polêmica no Brasil.

Como?

— Não houve. O que vejo são pessoas arrancando o rabo um do outro. Isso não é polêmica, é mala leche, como dizem os espanhóis. Polêmica para mim são aqueles debates que tiveram Jean-Paul Sartre e Albert Camus. Aquilo teve repercussão no mundo todo. Do debate entre Roland Barthes e Raymond Picard, por exemplo, nasceu o estruturalismo! — se empolga. — Na polêmica tem que haver posições definidas. Na história das idéias no Brasil, as polêmicas têm um papel mínimo.

Seja arranca-rabo ou debate consequente, o fato é que se discutiu entre 1850 e 1950 muita coisa maior que tempos verbais e picuinhas políticas e várias estão em “Serpentário”.

Nas suas críticas pesadas ao poema épico “A confederação dos Tamoios”, de Gonçalves de Magalhães, José de Alencar delineava também para si o que seria o indianismo que praticaria em “Iracema”. Os modernistas se defenderam de Monteiro Lobato (que atacava Anita Malfatti) e, em outro momento, dos neoparnasianos, que não se conformavam com a dianteira clara de Cecília Meirelles num prêmio da Academia Brasileira de Letras, em 1939. Há também duas controvérsias envolvendo Machado de Assis (embora ele tenha se mantido de fora): uma com Sílvio Romero e outra com Agripino Grieco. Ambas moldaram a visão da crítica sobre o autor.

— O que faz o mundo das idéias se mover é o choque delas — garante Alexei.

MUITO BARULHO POR, GERALMENTE, NADA
Polêmicos e marqueteiros movimentos

Várias das polêmicas de “Duelos” opõem movimentos vanguardistas e conservadores. Isso não mudou: movimentos continuam sendo um artifício do polemismo. Pena que geralmente sejam mais propaganda que substância. Dois exemplos: o McOndo, do chileno Alberto Fuguet, e a LPB, Literatura Popular Brasileira, criada e tocada à frente pelo carioca Luis Eduardo Matta.

Em 1996, Fuguet deu à luz o McOndo através de dezenas de artigos pregando o abandono de uma América Latina rural e folclórica, território mágico-realista de García Márquez, Isabel Allende e outros. Em seu lugar, o retrato urgente de uma América Latina feita não da Macondo de García Márquez, mas de “McDonald’s, Macintoshes e condos” (camisinhas). Deu certo: o movimento foi exaustivamente debatido e livros foram exaustivamente vendidos.

A polêmica morreu quando os de fora do McOndo cansaram de repetir (com razão) que a literatura latina sempre foi muito mais que as cândidas erêndiras de García Márquez, os clichês de Vargas Llosa, os banquetes de Isabel Allende. Só se resumia a isso na lista de mais vendidos do “New York Times”, onde Cortázar, Octávio Paz, Borges e outros tinham pouco ibope. Era um problema de mercado, não literário.

A América Latina “realista”, “urgente” que Fuguet parecia querer patentear já estava aí, sem rótulo, sendo escrita, e passava bem. McOndo, a etiqueta, não mudou em nada a literatura. Os livros de Fuguet, Martin Rejtman, Sergio Gómez, Edmundo Paz Soldán, Roberto Bolaño e outros, sim.

Caso parecido — embora ainda sem qualquer livro para defender-se — com o da Literatura Popular Brasileira, criada a uma mão (e ainda em busca de sócios) por Matta. A LPB propõe livros acessíveis, feitos com esmero, destinados ao grande público, “nacionalizando” gêneros estrangeiros como o thriller.

Mas será que num país de Jorge Amado, Paulo Coelho, Rubem Fonseca e Luis Fernando Verissimo podemos dizer que não temos literatura acessível, mais ou menos bem acabada, com um público imenso?

A proposição de Matta se explica quando lemos seus livros: thrillers de espionagem, tramas Hollywood e um ou outro personagem brasileiro. A LPB cria uma lacuna perfeita para os livros de Matta. Marketing básico.

O rame-rame para vender livro seria absolutamente inofensivo se não construísse de forma sutil uma oposição entre intelectuais que lançam mão de “experimentalismos ilegíveis, floreios intelectuais, frases rebuscadas ou engajamento sócio-político”, e Matta, que busca “democratizar a leitura”, como diz um artigo dele próprio no site Digestivo Cultural. Escrever fácil vira, num passe de retórica, dever patriótico.

Na verdade, o grande defeito dessa modalidade de polêmica é que não há muito a dizer sobre elas além de nove parágrafos num suplemento literário. Meio decepcionados, voltamos à poltrona do noticiário de sempre.


A DIFERENÇA ENTRE FÓRMULA e QUÍMICA

‘Thriller’ verde-amarelo de Matta não consegue ser mais do que suas referências

120 horas, de Luis Eduardo
Matta. Editora Planeta, 437
páginas. R$ 37

A Síria tem um programa nuclear desenvolvido em segredo. Tudo corre bem até que um engenheiro decide chantagear o regime, pondo em risco a região. Tudo parece no lugar: aí estão os terroristas, o Oriente Médio, e em breve se acionará uma bomba de tempo para — claro — causar suspense. Para não ficar muito frio, há um drama familiar: um homem busca seu irmão desaparecido. E, já que é um livro brasileiro, esse drama será o de um brasileiro. Algumas reviravoltas e pronto: temos um thriller clássico. Mas algo não funciona.

Luis Eduardo Matta parece ter lido centenas de thrillers. Escreve todo o tempo em montagem paralela, truque clássico. Mas pouco acontece nessas histórias concorrentes até depois da metade do livro. A partir daí, as reviravoltas acontecem com tanta frequência que perdem o impacto. A maioria soa arbitrária, decidida pelo autor, não a consequência de uma lógica que é revelada e surpreende o leitor. Matta também faz descrições precisas de ambientes na Síria e Líbano, mas o leitor teria de ser maníaco por detalhes e ter visitado os lugares (dois defeitos do resenhista) para saber.

O maior problema é de tom: há um descompasso explícito entre a velocidade que os acontecimentos têm, sua narrativa e os diálogos que são travados, muitos em frases de meia página e infinitas orações subordinadas. Gera-se suspense a respeito de quando vem o ponto parágrafo.

Resenhas sobre o livro foram publicadas afirmando que a maior qualidade de “120 horas” é precisamente não ser diferente de similares estrangeiros. Inverdade. Falta o gênio de Forsyth, Le Carré. Sobram seus clichês.

É a diferença entre fórmula e química o que fica explícito no livro de Matta, seu terceiro. O autor capitaneia um movimento chamado Literatura Popular Brasileira. Num de seus manifestos, se pergunta porque não há ainda um thriller verde-amarelo, com autores e mercado nacionais.

Lendo "120 horas" dá para entender.