14.2.04

Sherazades tiram véu de silêncio


Marjane Satrapi, em autoretrato

(Publicada originalmente no Idéias, do JB)

Reading Lolita in Tehran
Azar Nafisi
Random House, 238 páginas
US$ 13,95

Persepolis
Marjane Satrapi
Pantheon, 160 páginas
US$ 12,57

O primeiro é um ensaio sereno e sofisticado, crivado de referências literárias. O segundo, uma ácida história em quadrinhos feita a partir da ótica de uma criança. Contudo, a distância entre Lendo Lolita em Teerã, de Azar Nafisi, e Persepolis, de Marjane Satrapi, não poderia ser menor. Tão diferentes quanto complementares, as duas memórias (que serão publicadas este ano no Brasil) abordam a vida de suas autoras durante a Revolução islâmica do Irã, que completa 25 anos este fevereiro, numa fase de instabilidade com poucos precedentes.

Persepolis retrata em forma de quadrinhos a infância e adolescência de Marjane no Irã, entre o fim da década de 70 e o início da década de 80. A autora diz que o livro registra as histórias que, por anos, fascinaram amigos e colegas: as polícias de costumes, os mísseis iraquianos, os jasmins que sua avó guardava dentro do sutiã para ficar cheirosa. Depois do sucesso – 150 mil cópias na França, 40 mil nos EUA e uma sucessão de prêmios – já estão sendo finalizados mais dois volumes, que retomam a história do abrupto ponto onde parou. Já Lendo Lolita… mistura análise literária sobre Nabokov, James, Austen e outros com as memórias do período em que Azar, uma professora de literatura inglesa, mantinha classes clandestinas em casa com um seleto grupo de ex-alunas.

O véu, por coincidência, é o ponto de partida das duas histórias. Para Azar, ele funcionou como uma senha. A exigência, por parte de seus superiores na Universidade Allameh Tabatabai, de que usasse o hejab durante as aulas foi o sinal de que os tempos haviam mudado demais. Desligou-se da universidade e passou a reunir em sua casa um grupo tão interessado quanto heterogêneo de alunas para discutir grandes obras da literatura ocidental. Já em Persepolis, é o véu que torna palpável para Marji toda a reviravolta cultural imposta pelos ciosos mulás: sem saber exatamente por que cobrir os cabelos com aquele pano espesso e negro, Marjane e suas colegas do liberal (e agora extinto) Liceu Francês transformavam o hejab em corda de pular, fantasia de monstro – ou simplesmente jogavam-no no chão.

E é exatamente essa sanha infantil de reinventar elementos da realidade circundante (ou mesmo de abandoná-los, suprimi-los) que os quadrinhos de Marjane flagram com boa mira. Num momento, ela festeja a derrubada do xá entronado pelo Ocidente; noutro, odeia o regime por não permitir turmas de meninos e meninas; num terceiro, quer alistar-se, aos 11 anos, para lutar por seu país na guerra com o Iraque. Da mesma forma, diz ser o novo Messias e recebe Alá para conversas ao pé da cama – apenas para venerar Che Guevara e ler avidamente uma versão em quadrinhos do Materialismo dialético no instante seguinte. A grande diferença entre Karl Marx e o Altíssimo, conclui ela num certo ponto, é que o cabelo do primeiro é mais encaracolado.

Mas é um engano confundir a inocência da personagem com a da autora. Um humor por vezes ácido permeia todo o roteiro que, se à primeira vista parece linear em excesso, tem pontos de tensão, drama e comédia magistrais. Nesse sentido, os desenhos de Marjane – radicalmente monocromáticos, lembrando muito as xilogravuras do nosso cordel – servem como metáfora perfeita do que parece ser seu método. O preto-e-branco, assim como o ponto de vista pretensamente infantil, serve para descarnar e expor os cinzas de uma realidade complexa, não distorcê-la ou mascará-la. Diz muito, por exemplo, o fato de ela não citar sequer uma vez o nome do aiatolá Ali Ruhollah Khomeini. Lendo Lolita… mergulha num mundo de cores mais vivas. A atenção da autora flutua sobre vários períodos, abandonando-se em digressões povoadas ora de anedotas, de memórias, de livros, ora de suas alunas. O colorido é também imposto às obras que são discutidas no grupo, talvez um dos itens mais interessantes do livro. É esclarecedor que ao fim da introdução Azar afirme que “não há como escrever sobre esse romance sem também escrever sobre Teerã. Essa, então, é a história de Lolita em Teerã, como Lolita deu uma cor diferente a Teerã e como Teerã ajudou a definir o romance de Nabokov, transformando-o nesse Lolita, nosso Lolita”.

Esse Lolita ao gosto das freguesas, aliás, está bem distante do clichê com que nos costumamos deparar em análises da obra: avaliações morais sobre o caráter tanto de Lolita quanto de seu algoz, Humbert, e a habilidade desse último em seduzir também o leitor. O que interessa nessa Lolita teeraniana é a forma deliberada e lógica com que Humbert molda e conta a história de “sua” pequena Dolores. É a dinâmica de uma vivência seqüestrada que Nabokov, através de Humbert, dá em conta-gotas ao leitor. O mesmo se repete quando Azar e suas pupilas analisam brevemente as Mil e uma noites. Se tanto a rainha quanto as virgens mortas pelo rei noite após noite não têm como reagir ao monopólio da violência detido pelo monarca, Sherazade e sua irmã se safam porque se posicionam de outra forma dentro das mesmas circunstâncias. Substituem a violência, plano em que o rei tem o domínio, por uma relação em que conta mais a criatividade que a força.

O mesmo sucede com as autoras de Lendo Lolita… e Persepolis, que tomam suas histórias nas mãos e provam que ler e lembrar podem ser gestos da contestação mais dura. Tem um sabor amargo, contudo, a constatação de que ambas só podem fazê-lo a partir do exílio, Marjane em Paris, Azar em Washington.