31.10.08

Morris e sua amiga – a ilógica



Standard Operating Procedure ("procedimento operacional padrão") finalmente está entrando em cartaz no Brasil, o que dá mais uma chance ao público pátrio de conhecer o trabalho de Errol Morris, dos ótimos A tênue linha da morte e Sob a névoa da guerra. A idiossincrasia do trabalho de Morris foi se perdendo ao longo dos anos à medida que seu estilo foi sendo imitado e diluído – e também à medida que ele foi ganhando estrada e encontrando-se repetidas vezes com a incoerência.

É apenas irônico que isso ocorra (e Morris tem um aguçado olho para a ironia), já que sua obra é calcada exatamente nas incoerências e no peculiar que cada pessoa guarda. Morris busca em situações extraordinárias – um assassinato mal investigado, na pesquisa de lulas gigantes ou em um centro de torturas americano no Iraque – o desvio de lógica que é comum a todos nós. O desvio de que nunca conseguimos nos desviar, por assim dizer.

Mas esse post não é sobre o filme que está estreando agora, um estudo sobre como pessoas normais podem abraçar a crueldade de forma tão cotidiana, mas sim sobre o mais recente trabalho de Morris, que pode ser visto na íntegra acima. Se chama Pessoas no meio.

É uma campanha para o candidato democrata à Casa Branca, Barack Obama. À primeira vista, não há nada demais: diversas pessoas à frente de um fundo branco contam porque, de indecisas, passaram a apoiar Obama. Os depoimentos são sintéticos, a edição que faz que uma frase complete a anterior é competente, a imagem é cuidada e as personagens são bem escolhidas, não só pelo que dizem mas pelo que parecem ser: gente comum. Nada disso, contudo, garantiria um trabalho de interesse artístico.

O que garante o interesse (ao menos o meu) nesse trabalho de Morris é o fato de que ele vai contra o conceito por trás da maioria de seus filmes: ele aposta na lógica, na argumentação racional. Mais que isso, ele julga que as pessoas são capazes de serem regidas pela razão.

Toda a sua filmografia é baseada nas incoerências, no oposto disso. O filme acaba apontando para as incoerências do próprio Morris. É um documentário de como seu autor sempre filmou um processo que é intrínseco a ele mesmo.

Não à toa, uma senhora numa jaqueta marrom, lá pelo final do vídeo, afirma que "todos sabemos, em nossos corações, que Obama é o melhor".

E se há alguma coisa que Morris afirma e reafirma ao longo da sua brilhante filmografia – de forma absolutamente consciente, o que é raro – é justo isso: o cérebro sabe muito pouco.

No site de Morris se pode ler um pouco sobre as pessoas que falam no spot. Na revista Believer, ele conversa sobre a loucura das pessoas com (logo quem) Werner Herzog. Numa entrevista em áudio à Salon, argumenta que não é razoável pedir que os carcereiros de Abu Ghraib se desculpem – e obriga o repórter de forma hilária a se desculpar por afirmar tal coisa. Em seu blog hospedado no New York Times ele faz uma curiosa retrospectiva de comerciais políticos desse corte e – na medida do impossível – se explica.

29.10.08

Caliente!


Mais fotos em Macorig Paolo

Sempre que comento com alguém como já estou cansado do frio mexicano o interlocutor se surpreende: "México? Frio?" Por obra e graça dos clichês, as pessoas vêem esse país todo como a foto acima: um grande deserto pontuado por cactos e castigado por um intenso sol, com uma orlinha cancúnesca que mais parece alguma Antilha.

Pois é. O México pode ser frio. Bem frio. Demonstra isso o fato de que todo mundo se veste em camadas aqui: camisa, suéter, jaqueta e às vezes até um sobretudo. E também que já nevou algumas vezes aqui na capital. Vai uma ilustração abaixo, uma foto em algum ponto da fronteira com o Arizona.


Mais no Snowboard Revolution

Para os defeños, ou seja, quem vive no Distrito Federal, não é raro ouvir que vão passar o fim de semana en tierra caliente. Ouvi o mesmo em Bogotá, outra cidade que surpreende todo mundo com seu frio e cinza londrinos. Agora, pelo jeito, parece que vem mais frio por aí e o governo teme que o binômio crise+frio mate alguns mexicanos.

Brrrr...

A prece diária do homem moderno

Ao que parece, os editores de jornal acordaram graciosos ontem. Provas?

Uma paulista:


E uma carioca:


Galera do Meia-hora: quando vai abrir uma vaga para ajudar a fazer a primeira página de vocês?

26.10.08

Parabéns aos perdedores

Difícil descrever o que o Rio acaba de fazer consigo mesmo. É quase como uma criança dando um tiro no pé com o revólver do pai. Preferiu eleger mais um político profissional de cabelo pastinha maquinado por uma campanha cara e, nesse ano, especialmente desonesta e por vezes violenta.

Paes teve o apoio de um PT federal que sempre meteu os pés pelas mãos no Rio e deu mais dinheiro para atacar Gabeira que para apoiar seu próprio candidato, Molon. De um PMDB que pretende resolver a segurança no Estado à bala. De aliados que têm milícias ou escravos. De candidatos derrotados no primeiro turno que decidiram perder a memória sobre o próprio passado ou nunca esqueceram que o objetivo é continuar por cima, seja como for.

Teve apoio – e isso é muito importante – da maioria dos cariocas. Que votaram mal de novo e se iludiram, de novo, com uma campanha promesseira. Os anos Garotinho ensinaram nada ou muito pouco. Teve apoio também dos que acharam razoável votar nulo numa eleição que caminha fechar a contagem com uma diferença de menos de 50 mil votos. Só de nulos foram mais de 200 mil.

Teve apoio, porque não dizer, do próprio Gabeira, que permaneceu um tanto elitista – alguém diria utópico, não sei se é o caso – em sua forma de agir. Achou que bastaria ser uma versão municipal de Obama, quando o Rio precisava de gana, de cojones, de alguém que quisesse muito vencer, propor em voz alta, catar voto no subúrbio não só porque isso era necessário para ganhar, mas porque é a parte da cidade que merece mais atenção mesmo. Gabeira afugentou muitos de seus eleitores-padrão com alianças de véspera de eleição que dificilmente se justificam. César Maia mostrou que tem incrível capital político para subtrair votos daqueles a quem apóia.

Gabeira perdeu, basicamente, porque queria governar um Rio que existe na sua cabeça. Ainda não existe a ponte entre o verdadeiro e este. Gabeira não soube que essa seria a primeira obra do seu governo. Mereceu perder tanto quanto Paes não merecia ganhar.

Com a vista nublada de coisas assessórias ou inventadas – tangas, baseados, sungas, inexperiências – os cariocas decidiram que um almofadinha que estudou Direito é mais administrador urbano que um homem que já viu e estudou boa parte das soluções que dezenas cidades no mundo todo deram para seus problemas.

Metade e mais pouco dos cariocas merece o que aconteceu hoje e o que vai se desdobrar pelos próximos quatro anos. Aos outros, uma minoria quase igual à maioria, restará reclamar, um esporte em que os nativos têm muita prática.

Parabéns aos perdedores.

21.10.08

Voltando ao Che

Anuncio aqui aos sete ventos: há uma mobilização do site MovieMobz em progresso. Nada menos que 36 pessoas já se puseram de acordo para ver Personal Che no Odeon BR, Rio de Janeiro. Seria genial que se conseguisse mobilizar o filme outra vez e ele voltasse às salas do Rio pelo voto democrático de internautas que gostam de cinema.

E como já faz tempo que não ponho vídeos aqui, volto a postar o trailer em português do filme. Na época do lançamento, a versão em inglês, completamente diferente, foi a que circulou mais. Não há qualquer razão pra que a anglofonia continue reinando em assunto tão latino – ainda que o filme seja falado em cantonês, árabe, inglês, alemão e espanhol. :-)




Aqui você vê o trailer em inglês.



E aqui, uma molecagem.

Bom sinal


Um dos cartazes rejeitados do filme. Che não parece distraído aí?

Hoje me tomou quarenta segundos até que eu desistisse de lembrar o que Che Guevara garantiu que se devia fazer "sin perder la ternura jamás".

Tive que ir ao google para lembrar o que era: "endurecerce", claro.

Levando-se em conta que é uma frase extremamente popular do nosso amigo argentino (mais de dez mil hits no google) e que eu passei quatro anos de minha vida pensando na vida desse cara ao menos uma vez ao dia por conta de Personal Che, isso pode querer duas coisas:

Ou finalmente estou saindo da minha chemania pessoal (milhares de fatos de quatro biografias memorizados, identificação imediata de qualquer efígie do homem em qualquer ambiente, entre outros sintomas) – algo, diga-se de passagem, extremamente saudável, já que a vida e os projetos continuam.

Ou lá vem o Alzheimer.

20.10.08

Blá, blá, blá

O site da Economist acaba de soltar uma interessante notinha com tabela em sua edição de hoje. Conta as frases e palavras dos dois candidatos à Casa Branca no último debate e as compara com os números dos pretendentes à vice-presidência e também dos candidatos à presidência americana em 2004 e 2000. (Se gráfico estiver pequeno demais, clique)



Pouco surpreendente, o eloqüente Obama sai na frente na média de palavras por frase: mais de 19. Menos surpreendente ainda, a rabeira no ranking é de Bush: entre 13 e 15. Surpresa sim está no despautério republicano chamado Sarah Palin, que venceu Obama tanto na média de palavras por frase quanto no número de frases. Um machista diria que mulher fala pelos cotovelos mesmo, e faria falta ver que contagem Hillary Clinton teria. Eu, que sou só um pouco machista graças à minha origem sergipo-alagoana, digo apenas que Sarah Palin fala pelos cotovelos. Leve em conta que os números são médias: um "yes, I did" equilibra um monólogo de quase um minuto com quase 60 palavras.

Mais importante: a contagem intui, mas não determina o tipo de discurso de um candidato. Você pode ter frases longas – e nos brasileiros isso é comum – em que o emissor faz digressões e remete você a outros assuntos, a histórias pessoais ou a anedotas (como acabo de fazer nesta frase de 29 palavras). Você, beletrista, pode adornar de bem-colocados e criativos adjetivos seu belo discurso para uma vasta platéia sedenta de retórica redentora (como fiz agora em 21 palavras). Você pode fazer listas virguladas contendo acusações, vitupérios, ilações, memórias, broncas, predicados, defeitos, tiques, traições e incoerências do adversário. (Palim aprovaria essa, de 19).

Ou você pode fazer propostas, como a idéia de que os números ajudam um pouco a entender como funciona a cabeça de um candidato, mas não definem nada sem um tanto de bom-senso – literário, até – para julgar o conteúdo do que se está ouvindo, quanto é sobrancelhas e gestos de mão e quanto é formado por conceitos concretos. Essa teve 59, e acho que sai mais ao estilo de Obama. E digo isso a despeito de todos os problemas e aliados que tem. Seria muito interessante trabalhar sobre as transcrições de nossos debates a prefeito e ver como os candidatos se saem.

Suponho que Gabeira seria nosso Obama – inclusive nos problemas e aliados – mas como saber?

18.10.08

Pauta

E o tratador dos elefantes do rei disse:

"Elefantes selvagens se comunicam por grandes distâncias usando infra-som. Para estimular esse comportamento no cativeiro, vamos estabelecer um link de áudio via internet com os elefantes de um zoológico na Alemanha. Assim, Bua e Saonoi vão ter a oportunidade de conversar com outros colegas. Espero que eles achem interessante e estimulante"

13.10.08

Pou!



Nem só de linho e seda vive o mundo da moda

(Publicada originalmente na Piauí 25)

Miguel Caballero já deu mais de 200 tiros em clientes e colabo-radores, quase sempre aos sábados, para não incomodar a vizinhança de Polanco, bairro chique da Cidade do México. É algo que o colombiano atarracado de 40 anos faz com certa naturalidade. Pega o seu trezoitão, carrega-o, encosta o cano niquelado e frio à altura da barriga da vítima, avisa que vai disparar quando disser "três" e puxa o gatilho lá pelo dois e meio. Muitas vezes, registra a cena em vídeo - são os próprios baleados que pedem. Com anos de prática, ele diz haver uma beleza na expressão da vítima após o disparo: uma cara que mistura doses iguais de "Será que morri?" com "Isso é um milagre". Caballero é talvez o mais refinado - e confiável - alfaiate de roupas blindadas do México.

Há muitas fábricas de colete à prova de bala, mas poucas que conjuguem elegância com a capacidade de parar um tirambaço. Como a blindagem de aramida é flexível, Caballero faz questão de dar ao cliente uma prova de que a indumentária funciona. Uma prova de fogo. "Mas não basta chegar aqui, sacar um maço de 4 mil dólares e dizer: 'Quero levar esse casaco nível três.' Não é assim que trabalhamos", ensina o alfaiate. Cada cliente tem o passado checado numa lista de procurados do país de origem e em outra do FBI. Só aí pode tomar o tiro em paz. As roupas são vendidas em três tipos de blindagem, que pesam de 1 a 3 quilos. A mais leve evita tiros de 38 e 9 milímetros, pistolas usadas pela Polícia Militar do Rio de Janeiro. A proteção mediana é eficaz contra a Mini-Uzi, que caiu no gosto dos traficantes. E a roupa mais pesada resiste até a submetralhadora HK MP5, usada pelo Bope. Seria a indumentária ideal para o verão carioca?

"Dá uma sensação de poder, não dá?", pergunta ele enquanto o interlocutor se recupera do peteleco calibre 38 na barriga e do susto que imediatamente põe o corpo em estado de alerta. Não há um hematoma para contar a história, apenas uma sensação de calor, que logo se dissipa. "Isso que você está sentindo é apenas adrenalina", explica. Nossas primeiras jaquetas eram muito quentes, mas aprendemos a revesti-las com um forro que equilibra a temperatura. Não queremos que nossos clientes morram de tiro, e nem de calor."

Caballero ingressou na haute couture defensiva há dezesseis anos, época em que a taxa de seqüestro estava em alta na Colômbia. A idéia lhe surgira um pouco antes, quando era estudante de administração na Universidade dos Andes. Atento, reparara que seus colegas mais abastados preferiam ser escoltados a andar de colete, para evitar o desconforto (e a má aparência) em público. Teve um estalo: o que faltava não era blindagem. Era requinte.

Com a fábrica funcionando, o nome do alfaiate virou um must nas rodas sociais: uma jaqueta assinada por Caballero passou a ser peça obrigatória no guarda-roupa da elite antenada. E continuaria sendo caso Álvaro Uribe não tivesse sido eleito à presidência em 2002, impondo uma política linha-dura que acabou por diminuir a criminalidade. Com o nicho de mercado minguando, restou a opção de costurar para fora.

Da Colômbia, a Miguel Caballero Ltda., que se autodenomina especialista em "high security fashion", ganhou o mundo. Hoje, a grife tem filiais em sete países da América Latina. Do outro lado do oceano, África do Sul, Espanha, Itália, Áustria, Ucrânia e Reino Unido. Em Londres, o público-alvo (ou simplesmente "alvo") não é formado de ingleses, mas da nova safra de milionários russos e árabes, que marcam hora num discreto escritório da cadeia de lojas Harrods. No último ano, a empresa de Caballero faturou 9 milhões de dólares.

Como o alfaiate está onde o crime está, a atual menina dos seus olhos é mesmo a loja da Cidade do México, bem integrada a uma vizinhança de Diesel, Gucci, Prada, Hugo Boss e outras grifes do prêt-à-porter. Ainda que em números absolutos a criminalidade não tenha aumentado tanto para a população mais rica - gangues de traficantes têm mantido suas escaramuças nas periferias -, a percepção de insegurança vem batendo recordes a cada mês, e os seqüestros estão outra vez em alta. Caballero tem vendido roupa como pan caliente.

Por ora, ele investe nos desenhos tradicionais. A linha Black Collection traz camisas pólo, capas de chuva e jaquetas de couro com corte italiano. Já a linha Gold, menos sofisticada, reúne guayaberas, sobretudos e jaquetas de camurça. O plano para o futuro é abrir uma linha jovem, seguindo as últimas tendências da moda hip-hop. "Você tem idéia de quantos rappers comprariam?", pergunta. Hoje, a maior parte da clientela é formada por empresários e funcionários do governo. Há prefeitos, deputados, senadores, governadores e também presidentes na lista. Caballero se esquiva do assunto, comentando que certa vez "gente do palácio" veio reclamar que a informação vazou para a imprensa. Ainda assim, o recorte do jornal La Crónica de Hoy, criticando o presidente mexicano e seu ministério, continua orgulhosamente pendurado na parede: "Não nos protegem e ainda se blindam", diz a manchete.

Mais ao lado, estão as fotos dos poucos clientes oficiais: o presidente Álvaro Uribe, alguns prefeitos colombianos notórios no combate à violência, o príncipe Felipe, de Astúrias, o casal real da Jordânia e o ator anglo-esquimó Steven Segal. Na maioria das imagens, Caballero aparece ao lado deles. A lista, contudo, é maior, tirada a saca-rolhas do Armani da blindagem: o presidente -bonitão Rafael Correa, do Equador, tem um ou dois ternos; e sabe aquelas guayaberas vermelhas de manga comprida que o venezuelano Hugo Chávez usa de vez em quando? Pois é.

Num cabide próximo repousa outra guayabera, essa branca, muito similar à usada por Lula quando adota o estilo cucaracha. Corre o boato de que ela teria sido presenteada pelo hermano Chávez. O alfaiate desconversa, enrubesce, diz preferir tomar um tiro sem colete a confirmar a informação. Oferece um café, uma mudança de assunto e adianta que gostaria de abrir uma loja no Brasil, se não fosse pela burocracia excessiva do país.

Fiel à grife, Caballero não sai à rua sem sua jaqueta paramentada, capaz de parar sem problema um balaço de Colt 44. Medo de seqüestro, diz. Então ficou rico com os coletes à prova de balas? A seu lado, um assistente argentino ensaia um riso, e em seguida emudece, talvez lembrando que o homem à sua direita lhe deu um tiro quando decidiu contratá-lo.

10.10.08

Versões e mortes



Há quarenta e um anos, nesse mesmo dia, o cadáver de Che Guevara, morto na véspera, era mostrado para o mundo na lavanderia do Hospital Nuestro Senhor de Malta, na pequena cidade de Vallegrande, entre a planície e o altiplano boliviano. Hoje, como se vê acima, a lavanderia está coberta de rabiscos em homenagem ao homem mais famoso que já se deitou ali.

Há treze meses – antes, portanto, que todo mundo publicasse algo a respeito – a piauí publicou um texto meu sobre a morte de Che e os homens que a levaram a cabo. Um mês depois, já durante a febre, a revista Gatopardo, do México, publicou outra reportagem minha sobre o mesmo assunto.

São textos radicalmente diferentes entre si e também radicalmente diferentes das edições brutas que mandei a eles. Apenas para levar em conta o tamanho, o publicado pela Gatopardo é o menor de todos, seguido pelo publicado pela piauí; o bruto entregue à piauí é 50% maior que o publicado, e o bruto entregue à Gatopardo é de longe o maior: teve de ser cortado à metade para acolher as muitas fotos e caber na grade da revista.

O corte faz parte do jogo jornalístico e sem dúvida foram edições extremamente bem executadas pelos editores. Guardo com carinho até hoje todas as versões rabiscadas por Mario Sergio Conti e Dorrit Harazim, da piauí, atentos aos menores detalhes de todas as histórias tratadas no texto. As vinte e tantas páginas da minha versão definitiva da reportagem ocupariam, pelos meus cálculos, metade de uma piauí, o que é inteiramente ridículo. Isso sem mencionar que as pautas devem caber também na cabeça dos editores e eles, obviamente, não estão tão mobilizados pelo assunto quanto o repórter que, nesse caso, passou três anos e meio, ainda que sem saber, investigando a pauta. Quem era mesmo aquele mestre que dizia que o bom escritor escreve com a outra ponta do lápiz, a da borracha?

Aqui no blog, contudo, eu sou o editor e temos espaço à vontade. Portanto, acho mais do que saudável e – perdoem-me o desperdício de bits – interessante comparar todas. Então aqui está a última versão enviada para a piauí e a última versão enviada para a Gatopardo.

Quais são as maiores diferenças? Na piauí a matéria se move entre dois tempos: a época da morte e hoje. Meio de molecagem, deixei o que era mais antigo com verbos no presente e as coisas mais recentes no passado. A piauí foi mais responsável e me pediu que mudasse isso. O resultado é bom, mas para mim a conformação anterior é melhor – ainda que, no caminho, muitos erros, confusões e faltas de clareza tenham sido eliminados pela edição, melhorando bastante a reportagem. O ideal seria mesclar as duas edições.

No caso da Gatopardo, os cortes foram extensíssimos e algo da estrutura mudou com isso. Narro, por exemplo, o atentado perpetrado contra o homem que capturou Che, Gary Prado, em três partes. Entre elas, outros assuntos. Gera um certo suspense. Isso se perdeu na matéria final, embora ela tenha ficado muito – muito – mais ágil.

Uma coisa que as matérias da piauí quase não têm e as da Gatopardo têm é a discussão sobre quem mandou matar Che. É, como esse post, um jogo de versões. No bruto da Gatopardo há muito sobre isso e é quase definitivo sobre o provisório que se sabe hoje. Para quem tem interesse, é a fonte.

Por último, fotografar a matéria foi um desafio. Foi a primeira vez que realmente tive que pensar em como seriam as fotos de algo que ainda escreveria. Alguma coisa foi feita com material de arquivo (parte dele pesquisado por mim, inclusive), mas precisávamos de fotos atuais. Busquei refletir nelas um certo temor ou incômodo dos personagens em tratar do assunto. Abaixo seguem três delas. Na ordem, com patentes da época: Major Miguel Ayoroa, Comandante Gary Prado e um soldado raso que preferiu manter anonimato.





7.10.08

Furto

Comunico que a casa foi assaltada. Aliás, continua a ser assaltada. A situação só não é pior devido à burrice dos meliantes. Prova A:



As senhoritas na foto se recusaram a chegar perto da garrafa de mel por pelo menos um mês e meio. Estava em cima da mesa. Foi só mudar para outro lugar (na mesma mesa) e estava aberta a temporada de saque. Pus a dita garrafa no lugar antigo e, sem mais, as senhoritas desertaram do butim como se obedecessem a um aviso de "não estacione". Vai entender essas socialistas. Passemos ao segundo caso. Prova B, por favor:



O caso desses aí é outro: sujeitos desajeitados no trato com objetos maiores que uma noz ou uma avelã. Precisam de um intercâmbio urgente com micos (haverá micos no México?). Ao que parece, a espécie ainda está embasbacada com a laranjeira carregada no jardim e ainda não estabeleceu um método de coleta. Alguns agarram as laranjas e giram cuidadosamente em torno do caule até que o talo se solte. Outros agarram as mais maduras e as sacodem de um jeito quase obsceno. A taxa de sucesso é a mesma – mínima. Geralmente as laranjas escorregam pelas patas nervosas, caem no chão e os rapazes ficam olhando com sua perspicácia roedora. A turma do sacode às vezes cai junto com a fruta. Quase quebram as costas, mas ao menos tomam um pouco de suco.

6.10.08

Lello Arena


... ainda que falasse num dialeto estranho para os dali, o ator impressionou a todos na ilha com sua presença.

Livros


Há quem prefira as páginas, quem exiba as lombadas e quem escolha pelas capas. Brian Dettmer prefere essa estranha intimidade.

5.10.08

Mi crisis, su crisis


Centro de Comunicaciones Palmeras, Bejucos

Esse era o título que sugeri aos editores da Folha para a matéria sobre como a crise americana está afetando a economia do outro lado da fronteira, no México. Para fazer a reportagem, viajei a uma cidadezinha perdida na Sierra Madre chamada Bejucos. Poderia ser no Brasil: vida em torno da praça central, onde também fica a igreja e a delegacia. Praticamente só há mulheres, crianças e velhos na cidade. Os homens foram para cidades maiores, sejam elas no México ou nos EUA. Posto agora o primeiro parágrafo e depois os textos completos. Eles já estão disponíveis no site da Folha, só pra assinantes (clique em "próximo texto" para ler todos"):

"Griseldas Solís, 33, faz sua parte: penteia o cabelo para trás com esmero, aplica uma grossa camada de sombra cor-de-rosa nos olhos para combinar com a blusa e os brincos chamativos e se posta o dia inteiro à frente da Boutique MexUSA, numa das esquinas da praça central de Bejucos, cidadezinha de três mil habitantes na Sierra Madre mexicana. Não adianta: poucos aparecem para comprar as blusas decotadas e coloridas que acarpetam as paredes da loja. Não há dinheiro circulando na cidade. A culpada tem as mesmas cores das unhas azul-branco-escarlates de Griseldas: a crise econômica dos EUA, que está batendo duro nas remessas enviadas de volta para casa por imigrantes mexicanos legais e ilegais."
Na Folha, a foto que ilustra é a de Griseldas, mas aqui preferi pôr outra, de uma casa de câmbio onde se recebe dinheiro vindo dos EUA. No fundo, são fotos da mesma coisa: a espera. Mais fotos de Bejucos aqui.

Atualizando: a matéria como saiu na Folha está aqui.

3.10.08

Tutti buona gente


"Um coveiro fracassado?"

Acabo de voltar da Itália, mais especificamente da ilha de Salina, na Sicília, ali perto de Stromboli e do Etna, onde aconteceu o SalinaDocFest, festival de documentário narrativo organizada por Giovanna Taviani (filha, adivinhou, de um dos Irmãos Taviani, Vittorio). O lugar é o sonho de qualquer festivaleiro, não apenas pela ilha ser uma delícia, mas porque o festival apresenta um ótimo panorama da produção documental italiana – que, infelizmente, não chega muito aqui na América Latina. Personal Che, junto com a produção francesa Barcelona ou morrer dirigida pelo senegalês Idrissa Guiro, eram os únicos filmes não-italianos da mostra.

Um tanto por conta das predileções de Giovanna, mas também pelo fato de a Itália estar ligada ao Terceiro Mundo pelo Mediterrâneo, uma das tônicas do festival são os filmes sobre migrações e êxodos. O resultado são diversos filmes extremamente políticos e de denúncia. O vencedor unânime do festival, Como um homem sobre a terra, de Dagmawi Yimer, fala das prisões líbias em que migrantes etíopes a caminho da Itália são detidos, torturados e às vezes mortos – tudo graças a um rentável acordo entre Silvio Berlusconi e o coronel Muamar Khadaffi. O filme aliás, ganhou o prêmio Finesta sul Brasile e passará na Mostra de São Paulo desse ano.

Apesar do tom político do festival como um todo, preciso confessar que a proposta que mais me agradou – tem também o melhor personagem – foi a do documentário Pinuccio Lovero, sonho de uma morte de verão, dirigido por Pipo Mezzapesa (acima na foto, comigo e a produtora brasileira Beth Formaggini – Pipo é o bonitão). É a prova de que documentário é uma forma de fazer filmes e não um gênero. O gênero dessa pérola, não há dúvida, é a comédia. O filme conta a história de Pinuccio, que aos trinta e tantos decide largar seu emprego para trabalhar como coveiro. Seu grande problema: ninguém morre. O filme registra exatamente sua angustiadamente divertida espera por um cadáver.

O tom, já se pode perceber no trailer, é farsesco, e em nenhum momento o filme se arroga uma autenticidade simulada em planos longos e tempos mortos – algo coerente com a carreira de Mezzapesa, que até esse filme fez apenas ficção. Há um subtexto político? Em se tratando do país com o maior índice de gente na terceira idade, sim, sem dúvida. Mas a questão é só o pano de fundo para um personagem que, antes de mais nada, está ali representando apenas a si mesmo. Enquanto não passa no Brasil (se é que passa), aí vai o trailer.

1.10.08

Chegando cansado


Madri (eu acho)

Este documentarista declara para todos os fins que depois de uma van (40 minutos), um barco (duas horas, três paradas), um ônibus (duas horas), um vôo Catania-Roma (uma hora), um vôo Roma-Madri (duas horas e meia) e um Madri-Cidade do México (10 horas e meia) está relativamente cansado e não se responsabiliza pelas besteiras que falar hoje na primeira projeção de Personal Che durante o festival de documentários mexicano DocsDF. Agradeço a paciência do público pela dose extra de bobagens que certamente serão ditas sobre Che Guevara, América Latina, carisma, política e o século 21.