9.10.01

''Forças especiais estão no Afeganistão''

Entrevista DAOUD MIR

(Publicada originalmente no JB)

Daoud Mir é um dos representantes da Aliança do Norte (também chamada de Frente Unida) que tenta costurar em Washington um acordo definitivo com a Casa Branca para depor os talibãs. Segundo contou ao Jornal do Brasil por telefone de Washington, a colaboração já começou: forças especiais estariam estudando o território afegão com a ajuda da Aliança, preparando-se para uma ofensiva terrestre.

-Qual a posição da Aliança do Norte sobre os ataques anglo-americanos ao Afeganistão?
-Nós saudamos esta ação contra os campos terroristas no Afeganistão porque os afegãos são vítimas e reféns desses terroristas. A coalizão internacional começou hoje uma segunda onda de ataques precisos contra instalações militares dos talibãs e de Bin Laden. Estamos prontos para iniciar nossa cooperação em terra também. Nos próximos dias, iniciaremos nossas próprias ofensivas.
-Qual é a situação atual da Aliança? O que falta para o começo de uma ofensiva?
-Estamos prontos para lançar uma ofensiva contra os talibãs e Bin Laden nos próximos dias. É claro que não posso mencionar datas precisas, mas gostaríamos de continuar nossa colaboração em terra com as outras forças.
-O senhor fala em continuar. Isso quer dizer que já existe uma cooperação em terra acontecendo?
-Sim, é claro. A comunidade internacional entendeu que, sem a ajuda da Frente Unida, não conseguirá muita coisa. Os afegãos estão prontos para lutar contra o terrorismo no país porque eles são as primeiras vítimas.
-Russos e americanos prometeram vários graus de apoio. A Aliança já recebeu algo concreto desses dois aliados, seja em armas ou dinheiro?
-Ainda não. Tivemos várias promessas, mas até agora não recebemos nada concreto da Rússia ou de qualquer outro país. Estamos abertos para receber suprimentos militares e lutar.
-Mas, concretamente, o que eles prometeram? Dinheiro, armas...
-Pedimos dinheiro, armas e auxílio tático, mas tudo que conseguimos até agora foi que eles jogassem suprimentos humanitários para o povo do Afeganistão. Eles agora sabem que o povo afegão é contra o terrorismo. Esperamos impacientemente por armas e dinheiro porque poderíamos acabar com isso rapidamente se trabalhássemos juntos.
-Concretamente, há alguma coisa?
-Do ponto de vista prático, nós temos alguns contatos em terra. Forças especiais estão no Afeganistão. Sei disso porque nós, da Aliança, construímos alguns abrigos para eles dentro da área sob nosso controle.
-Forças especiais americanas?
-Sim, americanas e de outro membro da coalizão. A presença ainda é pequena. Mas esperamos que o apoio militar e financeiro chegue logo.
-O senhor estaria autorizado a revelar onde essas forças estão?
-É claro que não posso revelar a localização exata das forças especiais, mas posso dizer que elas estão num lugar seguro sob nosso controle. Controlamos mais de 30% do Afeganistão e construímos um abrigo sólido e seguro para elas poderem estudar conosco o planos para as futuras operações terrestres no país.
-Quais são as articulações para o próximo governo? A Aliança do Norte vai participar da grande assembléia afegã, a Loya Jirga?

-Sim. Este é o ponto mais importante. Nosso povo sempre resolveu seus problemas de maneira extremamente democrática, através desta instância. Assim, convidamos o antigo rei afegão, Zahir Shah, não como um monarca, mas como uma personalidade importante no país, que pode ajudar a elaborar um esquema político justo que incluiria todos os grupos da sociedade afegã.

30.9.01

Futuro incerto do Afeganistão pós-talibã

Operação dos EUA contra o terrorismo pode mais uma vez deixar o país sem governo e com poucas alternativas

(Publicada originalmente no JB)

A planejada ofensiva americana contra o Afeganistão tem como alvo o milionário saudita Osama Bin Laden, mas certamente acabará ferindo de morte outro inimigo americano: o regime extremista dos talibãs, que controlam o país e protegem o homem acusado pelos atentados do último dia 11 nos Estados Unidos. E esta perspectiva, por incrível que possa parecer, é assustadora na complicada geopolítica da região. No Afeganistão, como em poucos lugares no mundo, os períodos de vazio de poder fazem tanta ou mais diferença no futuro do país quanto os períodos com governo. Hoje já se pergunta: quem, afinal herdará esse país miserável?

Os americanos sabem que não podem fazer como em 1994, quando, para tentar tranqüilizar a situação, aceitaram que o Paquistão implantasse um regime com o qual tinha afinidades étnicas e religiosas, integrado por estudantes de teologia das madrassas, escolas corânicas paquistanesas. Na época, ao contrário de hoje, poucos sabiam o que significava quem eram os talibãs.

Cautela - Washington parece ter aprendido com os erros do passado. Dá um passo de cada vez, trocando informações. Suas movimentações em direção dos dois sucessores mais evidentes agora - a Aliança do Norte e o antigo rei Zahir Shah- têm sido marcadas pela cautela.

É precisamente essa cautela que tem refreado o impulso americano de dar dinheiro e armas para a Aliança do Norte, de longe a maior oposição organizada ao regime, e sair conquistando posições no país. A Aliança teria a capacidade de tomar Cabul em breve mas Washington sabe que ela nunca seria capaz de governar o Afeganistão. A razão é simples e está no sangue: muitas etnias dividem o país. A Aliança Norte agrupa diversas minorias, enquanto os talibãs são a parte mais articulada da maior etnia afegã, a dos pashtos.

''De uma coisa eu tenho certeza: não há como governar o Afeganistão sem ter os pashtos do seu lado'', afirma Teresita C. Schaffer, do Centro de Estudos Estratégicos Internacionais (CISS), de Washington. A Aliança está ciente desse fato. Tanto que, nos últimos dias, tem se apresentado com o nome de Frente Unida.

''A Aliança está soando muito mais pró-Ocidente agora. Está determinada a derrubar o regime talibã'', diz Keneth Weisbrode, analista internacional com passagem pelo Instituto Internacional de Estudos Estratégicos (IISS). ''Acredito que o papel dos americanos agora seria tirar vantagem disso para capturar Bin Laden e destruir sua rede'', diz ele.

Problemas étnicos - Será difícil para a Aliança conseguir o consenso, contudo. ''Muitos dos comandantes da Aliança, como Israel Khan, de Herat, e Abdul Dostan, de Fary, têm péssima reputação devido à sua brutalidade''. Um governo da Aliança também desagradaria o Paquistão, que é um importante aliado dos EUA na ofensiva antiterror.

A ONU vem advogando há anos um governo de coalizão. Para a sorte de quase todos envolvidos, existe uma versão afegã milenar para esta prática comum na doutrina da resolução de conflitos: a joya jirga.

''É um antigo costume afegão. Trata-se de um encontro de todos os líderes tribais para resolver um problema. Nesse caso, estabelecer um governo legítimo'', explica Weisbrode. É nesse esquema que entra o rei Zahir Shah, deposto nos anos 70. Ele é o maior articulador da nova joya jirga e conta com os o apoio americano.

A coalizão tribal deve contar, inclusive, com membros moderados do talibã - seja lá o que isso signifique. ''Se for para acabar com os campos de treinamento terrorista, acho que os EUA estão prontos até para aceitar algumas pessoas do regime talibã nesse novo governo'', conclui Teresita.


ERROS DO PASSADO

''Se você me pedir para resumir todos os problemas da política americana para o Afeganistão, eu diria que o problema é que até bem pouco tempo não havia qualquer política para o país'', explica ao Jornal do Brasil o analista independente Keneth Weisbrode. ''Eles simplesmente deram as costas para o país em 1989 e deixaram-no descer ao caos''.

A debandada diplomática americana aconteceu poucos meses depois da debandada soviética. Para os americanos, a missão estava cumprida: eles já haviam dado aos mujahideen (guerreiros santos), dinheiro e armas para mandar o perigo vermelho para casa e o império soviético terminou se esfacelando.

O Afeganistão desceu ao caos, como diz Weisbrode, e as diversas guerrilhas que lutaram unidas para expulsar os russos passaram a guerrear entre si para chegar ao poder, acabando com a pouca infraestrutura que restava. Foi nesse cenário que os talibãs, com o apoio de seus ''irmãos'' paquistaneses - e a aquiescência dos americanos - subiram ao poder, derrubando o presidente Burhanuddin Rabbani, que havia sido empossado em 1992.

Esquisitos - ''As opiniões do governo americano sobre o talibã estavam muito divididas desde o início. Alguns otimistas viam neles forças da estabilidade - afinal, os paquistaneses montaram o regime pra isso - mas cinco minutos de conversa com qualquer autoridade do regime era o bastante para mostrar que eles eram um tanto esquisitos e nada parecido com um aliado confiável'', conta o analista. A despeito de tudo isso, a Casa Branca preferiu manter distância.

Tudo isso mudou depois dos atentados às embaixadas americanas na África, em 1998. Era a prova de que o Afeganistão, abandonado, havia se tornado um celeiro de terroristas. Mas a resposta talvez tenha piorado ainda mais as coisas: o presidente Bill Clinton lançou cerca de 65 mísseis contra o território do país. Entre as baixas só havia civis inocentes e suas cabras. Bin Laden, como se sabe, sobreviveu e os ataques terminaram por ajudar a ele e aos talibãs a recrutar mais homens dispostos a tudo. Uma lição que, aparentemente, os americanos não estão mais dispostos a esquecer.

28.8.01

''Não existem ódios no Timor''

Entrevista SÉRGIO VIEIRA DE MELLO

(Publicada originalmente no JB)

Depois de amanhã, os timorenses vão comemorar um agridoce aniversário. Há dois anos, o Timor Leste escolheu a independência da Indonésia, que invadira a ex-colônia portuguesa em 1975. A celebração nas ruas foi interrompida por uma represália de milícias pró-integração, responsáveis por um banho de sangue.

Este ano, Timor finca o pé na democracia: irão às urnas na quinta-feira para escolher os 88 representantes que redigirão a Constituição do país, pavimentando a estrada para as primeiras eleições presidenciais do Estado recém-nascido. Supervisionando tudo está o brasileiro Sérgio Vieira de Mello, de 53 anos, 32 deles na ONU.

Antes de ir para o Timor - na primeira vez que a ONU toma para si a ambiciosa tarefa de criar um país - o diplomata, que já passou por lugares como Sudão, Moçambique e Bósnia, foi o primeiro administrador de Kosovo, depois que as forças iugoslavas deixaram a província. De Díli, Vieira de Mello falou por telefone ao Jornal do Brasil sobre o orgulho de entregar o Timor Leste à democracia e sobre sua proximidade com um dos maiores líderes do país, Xanana Gusmão, que anunciou no sábado estar disposto a concorrer à presidência.

- O pessimismo é um resquício do massacre de dois anos atrás?
- É, e do Timor de 1974 e 1975, porque para os timorenses política sempre foi sinônimo de violência. O que nós tentamos nessa primeira fase da transição e principalmente desde o inicio de 2001, com a campanha de educação cívica e as comissões constitucionais que criamos em diversos distritos, foi justamente mudar essa mentalidade, essa percepção da vida política como sendo necessária e inevitavelmente violenta. A população reagiu muito bem. Tanto que, em julho, quando viajei pelos distritos do país antes da reunião do Conselho de Segurança da ONU em Nova Iorque, levei representantes dos partidos políticos comigo. A população, incluindo as pessoas mais humildes, nas partes mais remotas do país, exigiram que os partidos políticos respeitassem o pacto de unidade nacional e, principalmente, que jamais usassem métodos violentos para conseguir objetivos políticos.
- Como o senhor se sente entregando o Timor pela primeira vez à democracia?
- Eu me sinto orgulhoso da minha organização, que geralmente é criticada em suas operações de paz. Acho que desta vez o Conselho de Segurança nos deu um mandato viável, realista, e também os recursos necessários para implementar esse mandato, talvez o mais ambicioso na história das Nações Unidas. Afinal, estamos aqui com plenos poderes executivos e legislativos e inclusive com controle sobre a administração da Justiça. Nunca antes uma operação da ONU tinha recebido um mandato dessa natureza. Não posso me queixar porque os meios foram proporcionais à missão.
- Como o senhor avalia o processo de transição para a democracia, iniciado em 1999?
- Acho que a paz, a estabilidade e a tolerância que prevalecem neste fim de campanha eleitoral são a melhor resposta à pergunta. Todos duvidavam, até os próprios timorenses, da sua capacidade de gerenciar um novo processo político, uma campanha eleitoral, o registro civil e eleitoral, a formação de novos partidos políticos, sem que isso descambasse para violência, mais sangue e mais sofrimento para a população. É quase incrível, portanto, o que estamos vendo nestas últimas semanas. Isso demonstra que, se os timorenses não sabiam o que era exatamente democracia, certamente estavam fartos de saber o que não era democracia. Apesar de nunca terem tido uma experiência direta de vida democrática durante o período colonial ou nos últimos 24 anos de ocupação indonésia, eles sabiam o que era o contrário da democracia e isso os preparou. Foi talvez a melhor educação cívica que eles poderiam ter tido.
- Quais são os principais desafios do país?
- Além de um processo democrático sustentável e das instituições democráticas que estamos criando no Timor Leste, o primeiro grande desafio é econômico e social. O Timor já era, em 1999, uma das províncias mais pobres e atrasadas da Indonésia, e ainda foi devastado e arrasado em setembro daquele ano. Obviamente o país ainda não chegou a um estágio de desenvolvimento econômico que nos permita resolver o problema do desemprego, que ainda é muito sério em centros urbanos como Díli, onde a população dobrou desde agosto de 1999. Estamos com mais de 130 mil habitantes aqui. Em agosto de 1999, havia 68 mil.
- A que se deve esse crescimento?
- A dois fenômenos. Um deles, bem conhecido dos brasileiros, é a migração de zonas rurais para os centros urbanos. Além disso, as pessoas deslocadas em 1999, seja dentro do Timor Leste, seja na parte ocidental da ilha, ao regressarem, em vez de voltarem para seus distritos de origem, ficaram em Díli, pensando que seria mais fácil encontrar emprego. O desafio econômico será o maior e mais prioritário para o segundo governo de transição que, vou nomear em setembro. Mas, a médio prazo, as perspectivas são boas. O Timor Leste pode se tornar, em dois ou três anos, auto-suficiente em produção agrícola. Poucos países podem aspirar a esse luxo. E o Timor até hoje não explorou a indústria da pesca, apesar de estar cercado pelo mar. A produção de café também pode ser dobrada ou triplicada, de acordo com peritos brasileiros que estiveram aqui semanas atrás. Além disso, o Timor dispõe de recursos naturais, principalmente o gás natural e o petróleo do Mar de Timor. A médio prazo, este país poderia se tornar uma sociedade próspera. É essa esperança que vai animar os timorenses a suportar essa fase intermediária, que vai ser muito muito difícil.
- Há outros desafios?
- O segundo desafio será a consolidação da nova administração pública. Nesse setor também partimos do nada, da tábula rasa que encontramos em novembro de 1999, com uma administração pública em colapso total, colapso de recursos humanos e colapso físico. Desde o início do ano passado já conseguimos recrutar mais de dez mil funcionários públicos. Todos os quadros médios ou superiores da administração indonésia eram indonésios ou timorenses que se refugiaram na parte ocidental da ilha. Nossa administração ainda é rudimentar em certas áreas, ainda é muito vulnerável. O terceiro desafio é o da reconciliação. Mas eu acho que esse desafio será mais fácil superar no Timor do que, por exemplo, nos Bálcãs, na Bósnia, na Croácia e em Kosovo, porque não existe ódio aqui. Nunca houve uma guerra civil no Timor Leste. O que houve foram excessos cometidos por milicianos treinados, doutrinados, armados, organizados e comandados por não-timorenses. Nosso processo de reconciliação, de mãos dadas com Xanana Gusmão, vai no sentido de incentivar até os chefes de milícias que se encontram na parte ocidental da ilha a regressarem e dialogarem com a população que eles vitimaram, a aceitarem um processo judicial justo, que respeite os direitos humanos. Para aqueles que não cometeram crimes graves ou crimes de sangue, as comissões de verdade e reconciliação permitirão que sejam reintegrados nas sociedades locais. Alguns crimes que certamente seriam punidos com 10 ou 15 anos de prisão poderiam, no caso do Timor, levar a uma punição correspondente a seis, nove ou 12 meses de serviço comunitário. Esse processo está bem encaminhado. Eu tenho certeza que os timorenses mais uma vez demonstrarão maturidade. Muitos já regressaram e não foram castigados. Pelo contrário: foram muito bem recebidos e agora levam uma vida perfeitamente normal.
- No sábado, Xanana Gusmão anunciou que disputará a presidência. O que o senhor espera caso o país seja governado por ele?
- A decisão de Xanana é bem-vinda, foi muito oportuna. Concorrer é a decisão certa. Ainda havia muita incerteza na mente e nos ânimos dos timorenses, que vêem em Xanana um líder carismático, um líder da unidade nacional, um líder que seus próprios inimigos, aqueles que lutaram, votaram e até mataram pela integração com a Indonésia, respeitam. Essa é a peça que faltava no esquema que vou tentar montar depois das eleições, que inclui não só uma assembléia constituinte, mas também um segundo governo transitório, que será, na medida do possível, um espelho fiel do resultado das eleições. Um gabinete inclusivo, e não exclusivo, no qual eu também gostaria que Xanana tivesse papel ativo. Seria uma capacitação para quando ele assumir as funções de presidente caso seja eleito pelo povo. Algo sobre o que, a meu ver, não resta dúvida.
- Uma declaração de independência em 28 de novembro, como anunciam líderes da Fretilin, poderia criar problemas?
- Não. A posição da Fretilin sobre a data da independência é de princípio. A república de Timor Leste foi declarada unilateralmente em 28 de novembro de 1975. É uma data histórica, tem grande importância emocional, mais que política, para os timorenses. Nada impede que a Fretilin proponha o dia 28 como data nacional na Assembléia Constituinte. Mas isso não quer dizer que o país iria se tornar independente no dia 28 de novembro de 2001. Qualquer líder da Fretilin sabe que isso não seria desejável, que seria prematuro. O processo político de transição não estará concluído, a Constituição possivelmente não estará redigida em novembro. E se a Constituinte optar por um sistema presidencial ou semi-presidencial, vamos ainda ter que organizar eleições presidenciais. Os timorenses acreditam, e têm toda a razão, que o primeiro presidente do país deve ser eleito pelo povo, diretamente. Tudo isso nos leva a, no mínimo, março ou abril do ano que vem.
- O senhor já serviu em Bangladesh, Sudão, Chipre, Moçambique, Peru, Líbano, Camboja e Bósnia, além de ter sido o primeiro administrador de Kosovo designado pela ONU, em 1999. O senhor é o homem que as Nações Unidas chamam para resolver os grandes problemas?
- Não, eu não sou um caso único nem excepcional. Existe uma pequena equipe de pessoas como eu nas Nações Unidas que o secretário-geral [Kofi Annan]emprega em missões desse tipo. Somos o que ele chama de trouble shooters [solucionadores de problemas]. Não sou o único, e tenho muito orgulho de que ele pense em mim de vez em quando como um colaborador capaz de tentar implementar mandatos desse tipo em situações de conflito ou pós-conflito. Mas, repito, não sou o único, nem o melhor.
- O senhor também é conhecido por suas posições independentes. Esse temperamento foi o que o levou tão longe dentro da organização ou chegou a criar problemas?
- Nem um nem outro. Não acelerou a minha carreira, nem me causou prejuízos. Tudo depende de como você diz a verdade. Se for contundente demais, isso obviamente acarreta prejuízo, mas se souber ser moderado e equilibrado, os governos e os membros do Conselho de Segurança sabem aceitar críticas construtivas. Sabem que, quando nós, funcionários de carreira, formulamos essas críticas, não é para enfraquecer a autoridade do Conselho. Pelo contrário, isso fortalece a organização como um todo e também o Conselho.
- O que fica em sua memória depois desses dois anos à frente do Timor Leste?
- O que fica, vai ficar sempre, é a grande dignidade do povo timorense, que sofreu o diabo, mas continua caminhando de cabeça erguida para a independência. Isso é uma fonte de inspiração, de coragem e determinação para todos nós. Tem sido uma experiência extremamente enriquecedora e gratificante, talvez a mais gratificante que as Nações Unidas tenham me oferecido nesses 32 anos de carreira.
- E qual foi o pior momento desse período?
- Os piores momentos foram os meses de julho, agosto e setembro do ano passado, quando as milícias se infiltraram em grande número vindas da parte oeste, penetrando em profundidade no nosso território. Tive receio, naquela época, exatamente um ano atrás, de que assistíssemos a um fenômeno de conflito de baixa intensidade que pudesse acabar com o processo de transição. Mas nossa reação foi firme. Infelizmente tivemos que matar vários milicianos, todos bem armados, com armas de guerra. Outros se renderam e os restantes voltaram para o Timor Oeste. Acho que eles aprenderam uma lição. Eles sabem que se nos testarem de novo vão se arrepender e é talvez por isso que nessa estação não tenham tentado nenhuma infiltração. A fronteira tem permanecido tranqüila e pacífica. Espero que continue assim, porque se eles tentarem entrar, vão se arrepender. Mas aquele foi o momento mais difícil.

29.4.01

O caubói muda o tom em Washington

Bush tropeça no inglês, faz graça com as próprias fraquezas e não quer ser notícia. É o anti-Bill Clinton

(Publicada originalmente no JB)

Desde o início da corrida eleitoral americana, há mais de dois anos, uma das tônicas da campanha de George W. Bush era de que ele queria ''mudar o tom'' da Casa Branca e de Washington. Apesar de a frase se referir mais ao retorno de valores conservadores e morais tão ausentes durante os oito anos de Bill Clinton, Bush sem dúvida inovou em matéria de comportamento presidencial. O novo presidente dos Estados Unidos trabalha menos horas que seu antecessor, fala pouco, quando fala erra na gramática e afirma sem pudores que não é manchetemaníaco. Nada mais diferente que Clinton, que muitas vezes ganhou a pecha de ''presidente superstar'' e parecia estar em todo lugar para falar - discursar? - sobre tudo.

''Queremos ser desinteressantes'', explicou um assessor da Casa Branca, tentando justificar com ironia o afastamento midiático da Casa Branca. Bush tem ficado longe das luzes em momentos cruciais na vida do país. Depois de ter conduzido a crise do avião-espião na China de forma admirável - elogiada pela bancada democrata e criticada apenas pelos republicanos mais linha-dura -, Bush preferiu ficar em seu rancho texano bem longe dos 24 tripulantes do vôo que chegavam a Washington na Páscoa. Uma nota à imprensa foi tudo que se ouviu do presidente. O mesmo ocorreu quando uma revolta racial irrompeu em Cincinnati ou quando o Meio-Oeste do país foi inundado por uma enchente. Com Clinton, todas estas ocasiões certamente serviriam de pretexto para pêsames, discursos de improviso e seu tradicional torcer de lábios.

Oportunismo - O que não quer dizer que Bush não saiba usar a imprensa quando lhe convém. Depois de semanas sendo duramente criticado por suas atitudes antiecológicas, seus assessores montaram uma coletiva nos jardins da Casa Branca para Bush anunciar que assinaria uma medida banindo o uso de alguns produtos químicos tóxicos. Foi o início de uma tentativa de reabilitação ambientalista de sua imagem. O mesmo vale para a data que comemora seus 100 dias no cargo. Em um único dia, Bush concedeu 12 entrevistas exclusivas.

A relação com a mídia vai além disso, contudo. Bush conta com algum charme, e mostrou enorme talento para capitalizar seus próprios defeitos. O mais conhecido deles - seus tropeços gramáticos, conhecidos como bushismos - foi brilhantemente explorado na última semana, num evento destinado a arrecadar fundos para a campanha de alfabetização do instituto dirigido por sua mãe, Barbara. ''Alguns pensam que minha mãe abraçou a causa do analfabetismo por alguma dose de culpa diante da minha educação'', disse o presidente para a platéia de 2.000 pessoas. ''Na verdade, expandi o significado das palavras. Usei vulcanizar quando queria dizer polarizar, grecianos em vez de gregos. Inebriante, quando queria dizer hilariante.''

Outra acusação freqüente é de que Bush não decide muita coisa na Casa Branca e lê apenas os resumos dos documentos de Estado, deixando o trabalho duro para os assessores e para o vice Dick Cheney. Com verve de comediante, Bush declara: ''Para quem diz isso eu respondo... Dick, o que eu respondo?''. Na verdade, a idéia de que o presidente pode não ser um líder forte nem ter intimidade com a gramática e a diplomacia é relativizada por sua postura pessoal sóbria.

Personalismo? - Até por ter-se acostumado durante oito anos a falar sobre um personalista como Clinton, a imprensa continua tentando adivinhar nos traços da personalidade do texano as qualidades e defeitos do presidente. O episódio em que Bush afirmou que os Estados Unidos ''defenderiam Taiwan'' - os diplomatas do país torcem a gramática há pelo menos duas décadas para não serem claros a respeito - é creditado por muitos à sua impulsividade. Mas é difícil chegar a um resultado bem definido quando se põe Bush no divã.

''Mesmo tendo crescido no Texas e tendo esse jeito de compadre meio bobo, ele foi criado por pessoas que tinham um perfil bem elitista, a elite educada que veio da Inglaterra conquistar a América'', explica ao JB o professor John Orman, cientista político especializado em personalidade dos presidentes americanos, com três livros sobre o assunto. ''Do Texas vem a amabilidade, a extroversão. Desta elite - chamamos este tipo de New England gentleman (cavalheiro da Nova Inglaterra) - ele herdou um certo censo de civilidade e consciência política''. De certa forma, a impulsividade do caubói não combina com a seriedade e inteligência política dos fidalgos da elite texana. Mas Bush se agarra à sela e segue seu caminho.

22.4.01

EUA terceirizam risco na Colômbia

Para evitar desgaste político, governo americano substitui seus militares por firmas especializadas

(Publicada originalmente no JB)

No momento em que pousou seu helicóptero num campo de folhas de coca, depois de ser atingido em pleno vôo por um disparo das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), o capitão colombiano Giancarlo Cotrino não sabia o tamanho do precedente que a situação ia originar logo depois. Seu resgate envolveu dois helicópteros de guerra, que metralhavam intermitentemente as posições de onde cerca de 200 rebeldes atacavam a ele e seu co-piloto. O resgate foi feito por uma equipe de dois colombianos e quatro americanos. Pelo menos oficialmente, era a primeira vez que um cidadão dos Estados Unidos se envolvia diretamente no conflito colombiano.

A notícia reverberou com enorme impacto nos EUA quatro dias depois do episódio, numa reportagem do jornal Miami Herald publicada em 22 de fevereiro. A opinião pública simplesmente ignorava o fato de que civis americanos - a maioria deles militares da reserva - estivessem tão próximos da linha de fogo na Colômbia. Muitos passaram a se perguntar se o governo estaria financiando mercenários. ''O Pentágono está contratando alguém para fazer seu trabalho sujo'', acusa a deputada democrata Janice Schakowsky, que investiga os primeiros resultados do Plano Colômbia.

Tiros - Quando a campanha de fumigação aérea começou, em 12 dezembro passado, os pilotos encontraram pouca resistência por parte dos paramilitares de direita das Autodefesas de Colômbia, que dominam as plantações do departamento de Putumayo. O mesmo não se repetiu, contudo, quando a fumigação começou no departamento de Caquetá, controlado pelas Farc, o maior exército rebelde do país, com mais de 17 mil homens. Em 2 de fevereiro, no seu primeiro dia em Caquetá, o avião que despejava herbicida levou 11 tiros, mas conseguiu voltar à base. No domingo do acidente com Cotrino, um total de cinco aeronaves armadas escoltavam dois aviões de fumigação, prova de que os pilotos iam preparados para o pior.

Os americanos eram funcionários da Dyncorp, companhia privada americana que assinou em 1996 um contrato de US$ 600 milhões para realizar trabalhos de fumigação na Colômbia, Peru e Bolívia. Seu trabalho é cercado de mistério e seus pilotos são proibidos de comentar seu trabalho com jornalistas. O mesmo vale para a MPRI, firma americana de consultoria militar, que acabou de concluir um curso para o alto escalão do Exército colombiano.

Morte - O esquema é confortável para o governo dos EUA. Utilizando subcontratados, afasta-se o risco de ver um soldado americano sendo morto no exterior. Se o mesmo acontece a um empregado destas empresas, é sempre mais fácil justificar que o governo não tinha nenhuma responsabilidade sobre suas atividades ou o risco envolvido nelas. ''É sempre muito útil ter um grupo que não faça parte das Forças Armadas americanas, obviamente'', disse ao Miami Herald o ex-embaixador americano na Colômbia, Myles Frechette. ''Se alguém morre, você sempre pode dizer que ele não faz parte do seu Exército.''


AULA PERDIDA

''Não aprendemos nada desde El Salvador'', lamenta Robert E. White, diplomata americano que foi embaixador naquele país no início da década de 80. ''O que quero dizer é que há certos princípios de conduta em relação à América Latina e suas revoluções que devíamos ter aprendido desde então'', diz ele, por telefone, ao JB. White é diretor do Center for International Policy, instituto sediado em Washington que tem como maior objetivo estudar a política externa americana e buscar sua desmilitarização.

Ele usa sua experiência no pequeno país centro-americano como um trampolim para avaliar o que os EUA fazem hoje na Colômbia e propõem para o futuro da América Latina. Durante o fim dos anos 70 e início da década de 80, a América Central foi o palco de alguns dos últimos conflitos da Guerra Fria, com os EUA financiando os contras, que lutavam contra o governo sandinista na Nicarágua, e apoiando o governo de El Salvador na luta contra a guerrilha marxista.

Aliados - O ponto comum entre o que foi feito no passado em El Salvador e Nicarágua e o que se busca fazer hoje na América Latina é que os Estados Unidos continuam a fornecer ampla ajuda - em armas, assessoria militar, inteligência e propaganda - para apoiar seus aliados. É precisamente nesta estratégia que White vê o risco.

''Quando [o presidente colombiano Andrés]Pastrana apresentou a primeira forma do Plano Colômbia a Washington, não havia uma única linha defendendo uma intervenção militar. ''Não havia lugar para isto'', diz White. Segundo ele, Pastrana buscava saídas diferentes para os dois maiores problemas do país, o narcotráfico e as guerrilhas, ambos causados pela mesma desigualdade social. Em teoria, o desenvolvimento iria gradualmente tirar as vantagens da cultura de coca por camponeses pobres, isolando os traficantes. Quanto às guerrilhas, seriam vencidas na mesa de negociação.

Drogas - A nova versão do plano guardou poucas semelhanças com a original. ''Os EUA disseram, basicamente: Não temos dinheiro para financiar esse desenvolvimento, mas temos recursos quase infinitos para pagar a guerra às drogas. O que nós, americanos, fizemos foi militarizar um plano que originalmente se destinava a trazer a presença do governo para dentro dos territórios dominados pela guerrilha'', diz White.

A interpretação pode parecer colorida pela ideologia. Mas os opositores do Plano Colômbia e do que já se sabe da chamada Iniciativa Andina argumentam que a coisa sequer passa por um suspeito jogo de certo e errado. ''Simplesmente não funciona'', explica a deputada democrata Janice Schakowsky, entrevistada pelo JB. ''Ontem falei com uma cientista que faz trabalho de campo no Equador e ela me contou que o desmatamento para plantar coca já começou por lá. O mesmo pode acontecer no Peru'', conta a deputada, que visitou a Colômbia em fevereiro para reportar ao Congresso americano sobre os primeiros meses de implantação efetiva do Plano.