10.12.05

Outros versos satânicos


(arte de André Mello sobre foto da AP. © O Globo)

Bin Laden ganha a primeira edição de seus escritos. Em inglês e nos Estados Unidos

Messages to the world, de Osama bin Laden. Organização de Bruce Lawrence. Verso, 224 pags. US$ 16,95

America’s enemy in his own words, de Osama bin Laden. Organização de Randall Hamud. Nadeem, 428 pags. US$ 17,95

Douglas McMillan

(Publicada em O Globo)

Há razões para ouvir o que diz um homem como Osama bin Laden? Muitos dirão que não: ouvir um terrorista sanguinário é, na melhor das hipóteses, perda de tempo, já que são seus atos que importam; na pior, é perigoso. Pensamentos de um insano como ele devem ser mantidos longe de todos, em quarentena, para que não contaminem o debate.

O grande problema é que palavras como “insano” ou “louco” não descrevem o Bin Laden que emerge das páginas de “Messages to the world” e “America’s enemy in his own words”, dois livros lançados no último semestre nos EUA que reproduzem pela primeira vez na íntegra boa parte de seus comunicados, entrevistas e opiniões (fatwas , em árabe).

Aqui tudo é ordem e lógica, parece milimetricamente calculado e planejado buscando efeito. Num fenômeno parecido com o do holocausto nazista, Bin Laden prova que a barbárie pode ser conjurada com lógica, ordem, concatenação cuidadosa, alguma sabedoria — e talento poético, até.

Orador inspirado, de múltiplos talentos
O que se vê nos dois livros é um homem capaz de, como um político profissional, citar números e desenvolver um pensamento complexo a partir deles. De criar elegias à luta suicida como um poeta versado nas delicadezas das quadras de Ommar Kayyan. Além disso, um muçulmano com um conhecimento invejável não só do Alcorão e dos hadiths, a história da vida de Maomé, mas também dos principais teóricos, teólogos e juristas que reinterpretaram os textos sagrados. Tudo isso embalado numa retórica potente, de fazer inveja a Che Guevara, emitida num tom calmo, desafetado, em árabe antigo e preciso.

— É claro que não concordo com uma só linha do que ele diz — conta ao GLOBO o americano Bruce Lawrence, medievalista especializado em Islã que selecionou as declarações de Bin Laden em “Messages”. — Mas não dá para deixar de reconhecer seu talento com a palavra. Antes do livro, eu o considerava um radical apenas marginalmente interessante. Depois, percebi o poder da retórica.

A preparação de Bin Laden começou na adolescência, na virada dos anos 60 para os 70, na melhor escola secundarista da Arábia Saudita, a Al Thagher. O Rei Faiçal expandia a rede de ensino numa velocidade vertiginosa, e começou a trazer professores de outros países para ocupar as vagas que se abriam. Justamente nessa época, Síria, Egito e Jordânia purgavam militantes da Irmandade Islâmica, grupo radical oposto ao secularismo de Gamal Abdel Nasser, muitos deles professores.

Bin Laden foi um dos primeiros a entrar no grupo de estudo corânico semi-clandestino organizado pelo novo professor de educação física, um sírio. Primeiro, versos do Alcorão, depois futebol. Com o tempo — a bola deixada de lado — todos os hadiths, o Alcorão inteiro e as idéias de teóricos conservadores, que propunham a volta da sociedade aos valores professados por Maomé.

Com o tempo, Bin Laden se radicalizou, tornou-se um homem de ação, organizando a oposição aos soviéticos no Afeganistão nos anos 80, mas nunca abandonou os livros — outro ponto em comum com Guevara, ávido leitor, mesmo no campo de batalha. Mas não se pense aqui que o saudita é dono de uma interpretação original, majoritária ou mesmo coerente das escrituras.

Lawrence, em suas notas de introdução, é o primeiro a demolir essa idéia. O verdadeiro talento de Bin Laden reside em fazer o texto sagrado dizer o que ele quer, nada muito diferente do que um pregador da pior espécie faz com o Novo Testamento. A diferença é que Bin Laden faz isso com grande engenho.

Embora tenham a mesma matéria-prima, há grandes diferenças entre as duas edições. “In his own words” tem mais textos, sempre declarações e discursos, mas lhe falta a tradução rica de “Messages”, feita por James Howarth, que já havia vertido o próprio Alcorão para o inglês. O maior trunfo da última, contudo, é mesmo Lawrence, que preferiu transcrever não só declarações, mas também entrevistas onde Bin Laden se comunica sob a pressão de um interlocutor. Lawrence também serve notas extremamente informativas, apontando trechos do Alcorão que Bin Laden cita seletivamente e contextualizando determinados textos na história recente.

Duas antologias, não duas apologias
Os organizadores dos dois projetos dizem ter ficado impressionados com a dificuldade de reunir os textos, espalhados por sites mais ou menos clandestinos ou citados aos pedaços pela imprensa. Ambos afirmam ter aceitado o projeto para que mais gente, além de alguns poucos acadêmicos, possa ter uma imagem mais precisa de quem é Bin Laden.

— Há dois problemas em considerá-lo um desvairado. O primeiro é esquecer que ele encara sua luta como uma resposta a atos muito concretos do Ocidente em sua região. São coisas que realmente aconteceram e que são vergonhosas — diz Lawrence, medindo as palavras. — O segundo problema é óbvio: um inimigo inteligente é mais perigoso.

Os trabalhos já atraem detratores. Os tradutores de “In his own words”, todos árabes morando nos EUA, preferiram permanecer anônimos. Já Lawrence afirma que seus emails, correspondência e secretária eletrônica estão “entupidos” de ameaças de gente que considera seu trabalho uma apologia aos crimes de Bin Laden. Algo que não faz o menor sentido para ele.

— Tenho mais medo de Osama agora, depois do livro.

TRECHOS

“FUSTIGAREI MEU CAVALO,/ ME ATIRANDO COM ELE AO ALVO/ Deus, se meu fim estiver próximo,/ conceda-me uma tumba sem enfeite/ de mantos verdes/ Não, deixe que seja a barriga de uma águia/ empoleirada lá no alto, com sua cria/ Deixe me ser um mártir, então,/ vagando pelo alto das montanhas/ entre um bando de cavaleiros/ que, unidos na devoção a Deus,/ se precipitam sobre os exércitos./ Quando deixarem esse mundo,/ deixam para trás a peleja/ e encontram seu juízo final,/ está nas escrituras.”

“BUSH ALEGA QUE ODIAMOS A LIBERDADE. TALVEZ ELE POSSA nos dizer porque nós não atacamos a Suécia, por exemplo.”

“O 11 DE SETEMBRO FOI REALMENTE GRANDE. (...) FALEMOS DOS efeitos econômicos. Como os próprios americanos admitem, as perdas em Wall Street chegaram a 16%. Disseram que é um recorde, algo que nunca aconteceu desde a abertura do pregão, há mais de 230 anos. (...) O volume bruto negociado chega aos US$ 4 trilhões. Multiplicando esse valor por 16%, chegamos às perdas. US$ 640 milhões em perdas, com a graça de Deus, uma soma equivalente ao orçamento do Sudão por 640 anos. E o ataque durou apenas uma hora.”

26.11.05

O apocalipse interno de Michael Herr

(Publicado originalmente no Prosa & Verso, O Globo)

Chega ao Brasil um dos relatos formadores do que hoje chamamos de ‘guerra’ e ‘Vietnã’


Despachos do front, de Michael Herr. Tradução e apresentação de Ana Maria Bahiana. Editora Objetiva, 254 pgs. R$ 39,90

"Quando você sai à noite os paramédicos te dão pílulas, hálito de dexedrina como cobras mortas que ficaram tempo demais num vidro. Nunca senti necessidade delas, um pequeno contato ou até mesmo qualquer coisa que parecesse um contato me dava mais pique do que eu era capaz de suportar. Cada vez que eu ouvia alguma coisa além do limite do nosso pequeno círculo cerrado, eu praticamente pulava, esperando em Deus que não fosse o único que estivesse percebendo aquilo. Uns tiros na escuridão a 1 quilômetro de distância e o Elefante se instalava de joelhos no meu peito, me enterrando nas minhas botas sem conseguir respirar.”

É essa intensidade — a intensidade de coisas que não são explicadas, que se sente — o maior trunfo de “Despachos do Front”, de Michael Herr, mais um lançamento da coleção Jornalismo de Guerra que a Objetiva põe no mercado. Na verdade, o livro é tão intenso que explode essas categorias — “jornalismo” e “de guerra” — como fossem de papel. Primeiro porque o livro foi escrito depois de oito anos de metabolização dentro do autor, é um registro “a frio” que zomba do pretenso imediatismo jornalístico. E segundo porque o que está em destaque aqui não é a guerra, mas o humano, esse humano em carne viva que as guerras em qualquer latitude e época expõem.

Perversão geral, inclusive das vítimas
Foi outro autor da coleção, o americano Jon Lee Anderson (que contribuiu com o tenso “A queda de Bagdá”) quem deu, na última Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), em julho, uma versão tão amarga quanto precisa do que é a guerra. “Em situações assim, mesmo os inocentes são maus. Não podemos nos enganar: o verdadeiro poder da guerra é o de transferir sua maldade para dentro de qualquer pessoa, mesmo as vítimas”.

Raras vezes em outro período da História tantos homens tiveram a vontade, o poder e a liberdade de, como o próprio Herr descreve, “serem Deus”. Não seria exatamente por isso que Francis Ford Coppola escolheu o Vietnã como cenário de sua versão de “Coração das trevas”, de Conrad, um “Apocalypse Now” que é essencialmente interno, demasiadamente humano?

Não à toa, Herr foi chamado a colaborar com o diretor logo no início do que viria a ser o roteiro do filme clássico. O Vietnã de Herr está lá, inteiro, nos vôos de helicóptero lisos e tensos, na umidade incômoda das plantações de arroz, no horror acontecendo sem muito aviso e tratado com algum descaso apenas porque se tornou banal. E nas pessoas bestializadas pelo ambiente, mas não só por ele.

Pode-se perguntar aqui a validade de considerar esse Vietnã como sendo apenas de Herr. Ele está presente, por exemplo, em “Platoon”, de Oliver Stone, feito muitos anos depois e refém do modelo criado por Coppola com sua ajuda. Mas também está, de forma muito similar, em “Corações e mentes”, brilhante documentário de Peter Davis, que precedeu todos, inclusive o livro de Herr, em alguns anos.

É precisamente aí que o relato de “Despachos”, mesmo tendo sido escrito muito depois dos acontecimentos, se reconcilia com o fio jornalístico. Herr desceu a guerra do Olimpo, despindo-a de cores vivas e heroísmos inventados. A única guerra verossímil naqueles — e nesses — tempos de inocências perdidas. Hoje sabemos que a guerra na TV é um engodo porque aprendemos — não só com Herr, mas muito por sua influência — que as guerras são sujas, enlameadas, tristes. Que não há heróis. De quebra, o americano retratou com pincel fino aqueles anos em que um país pobre do Oriente e os EUA se cruzaram para dar à luz a aberração geopolítica, estratégica, social e comportamental chamada Vietnã.

O engenho do autor está não só no que conta, mas principalmente na forma como conta. A linguagem do livro é também um resultado dessa cruza perversora. Uma mistura de jargão militar com gíria hippie, o choque da poesia beat do rock com o analfabetismo de recrutas com saudade e raiva de casa. Todos os que estiveram lá foram expostos a essa linguagem bastarda, mas poucos, além dos jornalistas, tinham proximidade bastante para ouvi-la e a sensibilidade necessária para admirá-la.

Caminho diferente do de José Hamilton
É especialmente interessante comparar a abordagem de Herr com a de José Hamilton Ribeiro, o decano dos repórteres brasileiros, que cobriu o Vietnã para a revista “Realidade” em 1968. Seu relato, “O gosto da guerra”, republicado na mesma coleção da Objetiva, é em quase tudo oposto ao de Herr, embora ambos sejam intensamente pessoais.

José Hamilton tinha seus trinta e tantos anos quando chegou a Saigon. Estava longe de ser um hippie, ou mesmo de viver a ressaca do movimento hippie . Para o brasileiro, era fácil dizer o que era o Vietnã. O Vietnã era tudo que não era José Hamilton. E é esse distanciamento que faz seu livro funcionar: quando ainda está em vigor, o jornalista reportando o que vê; mas especialmente quando é feito em cacos, pela mina que rouba a perna esquerda do repórter e transforma toda sua objetividade numa subjetividade forçada.

Herr vai em outra direção. Em muitos momentos é impossível dizer onde termina o Vietnã e onde começa o autor. Ele próprio não parece saber ou mesmo querer saber onde está esse limite.

A despeito de todas as comparações com a guerra no Iraque que serão levantadas, de tudo que o livro tem a ensinar a qualquer jornalista, não é isso que conta mais aqui. No dia em que a Guerra do Vietnã ganhar sua história definitiva, o livro não terá valor algum para saber datas, detalhes, nomes. Mas “Despachos” é fundamental para entender o amálgama de paranóia, depressão, bravura, culpa, tédio e burrice que se instala em qualquer pessoa num “teatro de operações”. Não há despachos do front nesse livro. Há despachos de Herr.

17.11.05

A um metro de Evo Morales



(uma versão dessa matéria foi publicada em NoMínimo)

Evo Morales está de tênis, jaqueta pesada de couro e o topo de sua cabeça é um formidável capacete de cabelo índio muito negro. Parece um pouco tenso. Fala baixo ao celular meio remendado olhando pela janela da sacada os muitos repórteres que o esperam no saguão do hotel e, por cima do próprio ombro, uns poucos que estão mais perto, apenas alguns degraus abaixo.

A dois quarteirões dali, na larga Avenida Mariscal Santa Cruz, garis ainda limpam o lixo de folhetos e bandeirolas de uma barulhenta e compacta manifestação comemorando os dois anos da queda de Gonzalo Sánchez de Lozada e protestando contra o racionamento do gás em botijão. Sánchez, que mal conseguia disfarçar seu sotaque americano nos pronunciamentos oficiais, foi tocado do palácio em outubro de 2003 depois de semanas de protestos contra a privatização do gás e do petróleo do país.

As lições de dois anos atrás parecem mais vivas que nunca. A "guerra do gás", como o episódio é chamado, ecoa como um sino de morte na campanha desse 2005. Morales está sempre vestido informalmente, deixando as gravatas para o vice Alvaro García Linera, impecavelmente metido em ternos retos que combinam com sua cara de menino grisalho. Gosta de discursar primeiro em aimara e quéchua, idiomas índios locais, e só então em espanhol. Parece a antítese perfeita para toda a classe de políticos profissionais que a Bolívia viu prometer e fazer muito pior na última década e meia. Não à toa, está com 33% das intenções de voto, sete pontos à frente do segundo lugar, Jorge Quiroga, um juiz gordinho e escanhoado que presidiu o país por alguns meses entre uma queda de mandatário e outra.

Mas mais que indumentária, as lições de 2003 estão escancaradas nos programas de governo: mesmo os partidos de direita, autores do que Morales chama de "saque", propõem taxação pesada sobre o produto, fazendo petroleiras de todos os hemisférios – inclusive a Petrobras, responsável por 15% do PIB do país – roerem as unhas.

Morales, ninguém parece ter esquecido, já fala do gás desde 1997, quando concorreu à presidência pela primeira vez. Logo, ele pode esse ano tomar um passo adiante dos outros candidatos: propor não só que se taxe fartamente o produto, mas renacionalizá-lo, re-comprando a infra-estrutura necessária para sua industrialização e transformando a YPFB numa estatal de petróleo "potente como a PDVSA e a Petrobras".

Não é preciso mais que esse pequeno passo para fazer qualquer dos milhares de executivos estrangeiros no país suar. E para, muitos crêem, ganhar a eleição.

A conjuntura tem ajudado. As comemorações dos dois anos da saída de Sánchez de Lozada foram muito engordadas pelos protestos contra a falta de gás. Filas e mais filas por botijões contados, brigas de tapa ao lado dos caminhões que distribuem o produto, gente mais pobre cozinhando com lenha. Tudo isso tem funcionado como um incômodo lembrete do despautério que é faltar gás no país que tem a segunda maior reserva do combustível na América Latina. E beneficiado Morales.

A coisa parece tão certa que mesmo os que quase nunca se metem de verdade em campanhas já apareceram: um grupo de artistas montou uma coletiva de imprensa para entregar a Morales um manifesto do que a classe espera desse governo "progressista e democrático". Ele desce da tal sacada, distribui sorrisos e segue para a pequena tribuna no saguão que segundos antes olhava desconfiado. Ouve as reclamações, pede desculpas sem muito pudor por não ter dado tanta atenção quanto devia à questão e satisfaz os presentes com suas promessas. A coisa toda termina com uma cantora subindo ao minúsculo palco para interpretar uma ranchera. Um outro artista de bigode daliniano aparece com três taças que enche de vinho de garrafão. Os outros ficam com copinhos plásticos para café. Ergue-se um brinde e Morales já está agarrado ao celular de um repórter de rádio, criticando Sánchez de Lozada e dizendo que "essa lição aprendemos". Todo mundo fica com o copo em suspenso por dois minutos até que a coisa acabe, fios de vinho descendo pelos braços de alguns. O repórter comenta, termina, vai embora, alguns colegas o maldizem entre os dentes, Morales derruba meia taça no chão como oferenda à Pachamama, a mãe-terra dos bolivianos, bebe o resto rápido e sai de fininho. Encurta rapidamente a pé os cerca de duzentos metros que separam o hotel do congresso nacional com uma entourage mínima e quase ninguém o reconhece. É um índio a mais nessa cidade grande.

Pinota para dentro do Congresso e some no escritório da segunda liderança. A secretária diz que "Dom Evo" me espera. Me surpreendo ao encontrar uma pequena turba de jornalistas estrangeiros e dois documentaristas bolivianos. Os que ficam mais para trás na rodinha que se forma parecem amarrotados e cansados. Um deles diz que o maior legado boliviano é sua úlcera, fruto de um ano e meio nas notícias do país. Morales começa a falar e todos ouvem, gravam, anotam e filmam atentamente cada palavra dita de forma precisa, carismática e baixa.

Três anos atrás, falar com ele era fácil. Qualquer tique no sismógrafo político da Bolívia era acompanhado por um comentário seu. O número de seu celular - de seus dois celulares, melhor dizendo - era o segredo mais mal guardado da Bolívia e ele sempre estava disponível a comentar sobre qualquer coisa com uma frase de efeito boa para abrir matérias. Hoje é quase impossível encontrá-lo sem se acotovelar com colegas, sem pôr o gravador ao lado de outro, sem uma breve diplomacia para ver quem fala com ele em exclusivo primeiro.

Não que ele tenha perdido o apetite pelas manchetes. O que lhe falta é tempo, agora que parece prestes a virar presidente. Mas sempre que há uma boa oportunidade, está lá. Como não ir à Cúpula dos Povos, à margem da Cúpula das Américas, em Mar del Plata, para xingar George W. Bush ao lado de Hugo Chávez e Maradona, como fez semana passada?

Depois de alguns minutos, a turba sai e Morales está sozinho na sala comigo, uma jornalista francesa, dois retratos a óleo dele mesmo e um retrato de um general antigo. Vou para o fundo da sala e a repórter acerta com ele detalhes de uma "grande matéria" que sairá pouco antes das eleições num veículo que não consigo ouvir (nota em 2007: era Alma Guillermoprieto, que fez um perfil fantástico para o New York Review of Books). Morales a convence a acompanhá-lo ao Chapare - sua área de maior influência - e, depois de perguntado, diz que não gosta de falar de assuntos pessoais. A jornalista sai e ele discretamente pede à secretária que dê a ela alguns telefones, entre eles o de uma tia em Beni que "o conhece bem".

- E agora, companheiro, em que posso lhe ajudar? - pergunta ele, me chamando com a mão.

Sentamos em lados opostos debruçados sobre a mesa estreita. O rosto de Morales está a um metro, não mais. Lhe pergunto sobre os últimos dias, os protestos, toda a discussão sobre o adiamento das eleições. Ele, sem mover um músculo nem alterar a voz, liga a máquina de retórica.

- Há uma aberta conspiração. Da direita fascista, racista, neoliberal, junto a agentes externos como a embaixada dos EUA. Conspiram e provocam o MAS, o Evo Morales e os movimentos sociais, - diz ele, tratando a si mesmo na terceira pessoa. - Estão preocupados porque hoje temos a grande oportunidade de ganhar com 50% dos votos mais um.

- As pesquisas lhe dão 33%, a melhor delas - retruco.

- Esqueça isso. São pesquisas - diz ele, dando exemplos de eleições passadas onde o MAS, em média, triplicou as estimativas de intenção de voto. - Dizem que estamos com uns 30%. Não quero triplicar de novo. Me basta ter 60%.

Enquanto falava, Morales mal sabia que dali a duas semanas as eleições seriam suspensas e remarcadas para o dia 18 de dezembro uma semana depois, pondo fim a um impasse de meses que pôs em lados opostos o Oriente, região mais plana e à direta politicamente, e o Ocidente montanhoso, onde a retórica "andina" de Morales faz sucesso. Os primeiros, representados por Santa Cruz, pediam há vários meses mais quatro assentos no Congresso, alegando que têm cada vez mais peso econômico e demográfico no país. As cadeiras sairiam de três cidades do Ocidente que, claro, se opuseram. A situação foi finalmente resolvida com a transferência de três vagas do Ocidente para o Oriente, uma a menos que o pedido. Já se discutia essa solução quando ocorreu a entrevista, e Morales parecia mais preocupado com a possibilidade de não haver eleições que com detalhes de assentos e distritos.Crê que vence de qualquer jeito. A menos que aconteça um golpe de estado arquitetado com a ajuda - claro - dos americanos.

- Anteontem estive em Santa Cruz, montamos um pequeno comício com apenas cinco dias de antecedência. Eu não queria. Disse: "vamos fracassar". Chego lá e mais de 15 mil pessoas me esperam. É por isso que estamos seguros. Mas quando um índio tem a possibilidade de ganhar, surge esse tipo de obstáculo. O tema das cadeiras é isso. Querem mais cadeiras para Santa Cruz e menos cadeiras para La Paz, Oruro, Potosí. O que é que muda? Nada muda. Isso é pretexto para postergar a eleição, desagregar os movimentos sociais e unir a direita. É parte de uma jogada da embaixada dos EUA.

Morales está à vontade declamando suas melhores frases de esquerda. Não há freio para atacar os EUA e isso sequer é novidade. Mas a coisa muda quando se pergunta das reservas que se começa a ter no Brasil de um governo "moraleista". Do temor de que também no vizinho comece a faltar gás. Morales é todo cautela.

- Não há razão para medo. A Petrobras é uma empresa do estado. Temos que fazer um consórcio dessas empresas de estado. Ela e a nossa YPFB têm que fazer uma aliança estratégica, de médio e longo prazo, pra resolver nossos problemas nacionais e, em seguida, o tema regional.

- Mas o senhor acha que a Petrobras e o Ministério de Minas e Energia podem gostar da idéia de serem taxados em 50% e terem seus ativos recomprados à força na nacionalização que o MAS propõe? –, pergunto. – Nenhuma empresa gostaria disso, não?

- Conversei a respeito disso e eles estão dispostos a aceitar as novas regras. Quando assinaram os contratos? Quando o barril de petróleo custava US$ 18, US$ 19 (está em US$ 60 hoje). Eu compreendo a posição deles perfeitamente. Mas vamos negociar as plantas de Cochabamba, e devolvê-las ao Estado boliviano. Esse tema é incontornável. Não estamos falando de confiscar, de expropriar. Renegociaremos e o Estado recomprará tudo por preços realistas.

No primeiro semestre, contudo, houve tensão na Bolívia quando a empresa brasileira anunciou que estava reconsiderando seus investimentos no país. Dois ministros bolivianos chegaram a correr para Brasília levando panos quentes. Morales passa por cima disso e afirma que o Brasil precisa do gás boliviano da mesma forma que a Bolívia precisa da tecnologia brasileira. "Será gás por tecnologia", vaticina. Não só tecnologia de exploração e produção de gás e petróleo, mas também para outros campos como a agricultura, que Morales quer mecanizar. "Vamos mecanizar e subvencionar, principalmente os pequenos e médios", diz ele, mais para o gravador que para mim.

Morales parece cheio de grandes visões. De que o gás vai financiar o salto boliviano. De que os índios do país ainda precisam se libertar. De que o país tem adversários poderosos que tramam um golpe diuturnamente. Talvez seja isso que mais o aproxime de Hugo Chávez, Fidel Castro, até Bolívar: a noção de que seu país é uma potência que só não desabrocha por que inimigos que temem seu verdadeiro valor não deixam.

Difícil evitar os paralelos com o Lula de três anos atrás. Morales é um líder popular, um símbolo antes de qualquer coisa, o índio que chega ao poder no país dos colonizadores à maneira do operário que chegou ao poder aqui, no paraíso dos patrões. Se Morales não vestiu um terno azul marinho, foi apenas porque isso provavelmente seria a senha de sua derrota. A Bolívia, em 2005, é o país da autenticidade milimetricamente controlada. Que sabe quando xingar e quando soar razoável.

– Olha, eu em uma época da minha vida política generalizava os oligarcas. Eram todos maus para mim. Hoje já não acho isso. Nem todos são maus. Há empresários produtivos, apolíticos, empresários democráticos e não facistas. E com esses eu converso. Semana passada me deram uma linda festa em Santa Cruz, um banquete. Rainhas da beleza de lá, e até ex-rainhas, tiraram fotos comigo. E sabe por que? Todos estavam mobilizados pelo tema da pobreza. De que eu venho dos pobres e trago o tema da pobreza. Me deram todo o apoio para o que quero fazer.

Não por acaso, Morales disse meses atrás que considerava Lula "um irmão mais velho". Falo do sentimento geral de decepção no Brasil e da acusação de que o PT chegou ao poder sem projeto ou quadros suficientes para executá-lo. É algo que dizem a respeito do próprio MAS aqui, e menciono isso. Morales parece um pouco ofendido com a insinuação. Sua expressão é a de quem tem azia. Desgosto e asco controlados. Parece francamente decepcionado.

- De cabeça quente eu pensaria que você é um agente de inteligência da direita dos Estados Unidos, - retruca ele, num sorriso atravessado.

Subitamente, fica monossilábico, se desinteressa da entrevista. Mais dois minutos e diz que temos que terminar. Deixa a mesa onde estávamos, senta-se numa poltrona do outro lado da sala e começa a abrir um jornal sobre a mesa de centro. Depois de checar o gravador, caminho até a porta próxima a ele e me despeço.

- Adiós, - diz, sem tirar os olhos das manchetes.

3.11.05

¡Se juega!



(Uma versão dessa matéria foi publicada na Trip)

Nunca saltei de bungee jump nem vi uma prancha de snowboard fora de uma vitrine de loja. Jamais consegui ficar em cima de um simples skate por mais 20 segundos e acho uma temeridade esse negócio de kite-surf – além de algo que mal consigo descrever. Sou, se um resumo fosse necessário a essa altura, um mané para qualquer coisa que se aproxime de um esporte radical. Mas todo sedentário tem seu momento de revolta. Chegando aos trinta anos, aos 93 gordos quilos e à calvície irremediável, decidi que era hora de tentar algo diferente. Viajei para a Bolívia – que é, afinal, aqui do lado – onde descobri que as pessoas descem de bicicleta aquela que é reputada como a estrada mais perigosa do mundo.

São 65 km de cascalho grosso descendo de La Cumbre, a 4.700 metros de altura, até Coroico, no começo da Amazônia boliviana, 3.600 metros abaixo. A descida dura cinco horas. A estrada é entalhada na pedra, tem em média três metros de largura e o abismo mora ao lado, sem qualquer proteção. Uma queda vertical de 400, 500, até mil metros. Todos os anos a La Cumbre-Coroico some com mais de trinta veículos, às vezes mais de 200 pessoas. O título sinistro não é marketing: foi conferido em 1995 num relatório do Banco Mundial.

O raciocínio que me levou a essa roubada foi simples e saudosista: ao longo de um ano, meu pai tentou me ensinar a andar de bicicleta com psicologia e rodinhas laterais. Não houve jeito. Até que um primo desvairado resolveu me pôr em sua bicicleta (muito maior, sem rodinhas) e me jogar do topo da ladeira onde morávamos. Funcionou, apesar de uns quantos tombos.

Entrei numa das dezenas de agências de turismo em La Paz que oferecem a descida, respirei fundo e disse que queria a La Cumbre-Coroico. Reconhecendo o tipo de longe, o agente sorriu e jogou a psicologia fora.

– Você terrr segurro de vida em seu país? – perguntou num sotaque carregado Jöeck, um alemão assustador que foi morar na Bolívia, onde mudou seu nome para um palatável Juan. – Não? Não se prreocupa, eles oferrecem segurro aqui. Dez dólarr.

Juan Jöeck me passa então um caderno onde posso ver minhas opções. Seguro para perda de um membro custava dez dólares. De vários, 25. Da vida, 30. Um pouco nauseado e já amaldiçoando a idéia da reportagem, devolvo a ele o folheto.

– Eles recomenda, mas não é que você prrecisa ter seguro. O que você faz com a dinheirro se morre, né? – diz ele, soltando uma gargalhada arrepiante.

Fico feliz em saber que Juan Jöeck é apenas um operador terceirizado que não vai estar no passeio.

No dia seguinte, entro no micro-ônibus e partimos para La Cumbre. Escolhi a operadora com a melhor reputação no país, a Gravity Tours. Eles têm bicicletas Kona (me dizem que isso é importante) com freios a disco (me dizem que isso é muito importante) e são dos poucos a fazer manutenção constante de seus equipamentos (eu sei que é muito importante). Enquanto passamos pelas favelas de La Paz a caminho de La Cumbre, o rádio toca Chili Peppers, hip-hop em espanhol e AC/DC. "Highway to hell". Eles têm que estar brincando.

Chegamos ao topo. Às oito horas da manhã faz um frio cão. Três graus. O ar mal entra nos pulmões e estou tiritando antes mesmo de sentir medo. Estamos, afinal, a mais de meio Everest de altura. Nos picos em volta há neve e lhamas pastam não muito longe de onde estamos. Guy, nosso guia para a descida, começa a explicação sem meias palavras.

– Porra-loucas voltam pro ônibus. Fechou alguém, volta pro ônibus. Foi lento demais, desculpe, mas vai pro ônibus. Se você começar a apostar corrida comigo ou com o Jubert (o outro guia) vai pro ônibus. Simples assim. Ser valente aqui significa voar. E isso é uma bicicleta – não foi feita para voar, para quem não sabe.

Guy, um mountain-biker belga que "encheu o saco da Europa", explica então que devemos frear com 70% da roda traseira e 30% da dianteira. Fico pensando em como medir isso quando ouço a revelação.

– Vocês vão descer a uns 60, 70 quilômetros por hora. E é nessa velocidade com que vão acertar o chão se voarem sobre o guidão. Dói bastante. Freiem mais sempre com a roda de trás.

Setenta por cento, trinta por cento, setenta por cento, trinta por cento, fico repetindo como um autista, enquanto tento memorizar qual freio é qual.

Pro santo

Já montados na bicicleta, bebemos álcool hidratado dando um golinho "pro santo" antes. A Pachamama, mãe-terra dos bolivianos, abençoa a viagem. A coisa desce queimando o estômago vazio. O grupo de nove pessoas – britânicos, irlandeses, um islandês, uma amiga colombiana e o alien brasileiro – começa a descer.

O início do caminho é mole. Quatro pistas em mão dupla de asfalto lisinho. Bom para acostumar com a velocidade. Dá até para olhar os paredões de rocha cobertos de neve, lindos, enquanto se ultrapassa um caminhão com facilidade. Guy nos conta depois que nesse trecho descemos sem sentir a uns 80 quilômetros por hora. Mesmo na marcha mais pesada, é impossível pedalar.

Já estou achando tudo lindo quando vejo nosso guia abanando o braço. Presto tanta atenção nele que nem noto o asfalto acabando. Atinjo o cascalho ainda a 70 km por hora. Minha mandíbula treme. O traseiro sente cada pedra. Me assusto. Freio forte. Onde ficam os 70% mesmo? Minha roda traseira levanta. Vejo o chão de frente, em tracinhos rápidos. Jogo o peso para trás e a bicicleta quica e volta a andar em duas rodas, bamboleando. Ancoro a bicha no chão. Tem horas em que estar fora de forma e pesado é uma bênção.

Tem horas que não. Num certo momento, a estrada pára de descer. Fica plana, e começa a subir. Eu me lembro de ouvir que havia "uma pequena subida", mas acho que ignorei enquanto me embasbacava com a paisagem. Não que seja íngreme, mas com a altitude, a falta de ar e de preparo físico, qualquer subida é um sacrifício. Meu pulmão arde depois de cinco minutos. Me afogo a seco. Vou sendo ultrapassado pelos outros. De repente, sinto o vento no rosto de novo. Estou me movendo sem esforço e sem mexer os pés. Olho para trás e vejo Jubert, franzino e boliviano, empurrando a minha bicicleta, pedalando por nós dois. Não satisfeito, ele ainda começa a conversar, e em frases longas. Eu mal consigo dizer "sim" e "não". Mesmo assim, por pena, depois de um quilômetro digo a ele que vou descer e andar até o último cume. Ele assente e fica pedalando do meu lado, muito devagar.

Finalmente acaba a ladeira e damos a primeira parada. Olhamos em volta, a estrada ainda não é muito estreita. Mais abaixo, no vale, vemos uma linhazinha fina serpenteando pela encosta. Enquanto Jubert saca fora minha pastilha de freio, incandescente e já pela metade, e põe uma nova em folha, rezo para não ouvir o que ouço: é, é por ali que vamos descer. Terminamos de comer o chocolate que nos dão e beber um pouco de água, montamos e nos encaminhamos, como diz um dos irlandeses, "para a morte".

É uma matemática desgraçada, e cujo resultado nunca bate. Quanto mais devagar você vai, mais sente cada pedregulho. Mais rápido, menos pedregulho. Se você cai, óbvio, sente cada pedra, e aí faz muita diferença em que velocidade você vai.

No chão
Fez toda diferença pro nosso companheiro da Islândia. Ele alugou o pacote completo: óculos, macacão, calça impermeável, bicicleta com suspensão traseira. Só esqueceu de uma coisa: 30% na dianteira, 70% na traseira. Voou.

Encontramos Albert amontoado no acostamento, a bicicleta no chão. Tinha uns cortes no lábio, a cara estava meio ralada, todos os dentes no lugar. O mesmo não dá para dizer da mão direita. Seu mindinho tinha ganhado uma articulação extra, para fora. Albert evitava falar.



Subitamente todos memorizam qual mão freia só 30%.

A estrada vai ficando mais estreita e mais íngreme. Somos instruídos a andar pelo lado de fora da pista, perto do abismo, longe dos carros e caminhões que sobem. Mal vemos a pista, porque pedalamos no meio das nuvens. Desmoronamentos comem pedaços da beirada grandes o bastante para caber uma bicicleta. Descubro depois que o projeto foi executado por prisioneiros paraguaios da Guerra do Chaco, nos anos 30. Isso explica alguma coisa. Sigo amaldiçoando ser ateu e não saber rezar.

O cascalho vai ficando mais grosso, a estrada continua estreita – e mais íngreme. Os dedos começam a ficar exaustos de frear no talo depois de duas horas. Parece suicida, mas você começa a se acostumar à velocidade e à tremedeira e deixa a bicicleta deslizar quase solta, freando só nas cruvas, que são muitas e fechadas. Passo por algumas das centenas de cruzes que pontuam o caminho. Freio um pouco. E depois esqueço. Desço, diminuindo um pouco quando passa algum caminhão.

Já é a quarta hora no caminho. Entramos agora na fase que Guy descreve como a mais perigosa. A estrada fica mais larga, os ciclistas mais acostumados com a velocidade – e aptos a voar. As curvas fechadas começam a me enjoar. Em algumas há parentes de vítimas sinalizando com bandeiras verdes ou vermelhas se vem alguém, esperando uma moeda.

Vou deslizando pela pista sem ouvir nada mais que o barulho do vento nas orelhas e o tec-tec de um motor distante. Viro à toda numa curva fechada e de repente estou a dois metros de um radiador enorme, com a palavra VOLVO pintada em letras garrafais. Bamboleio, me assusto, desvio, xingo e paro no acostamento. Estou a dez centímetros de um precipício simpático e convidativo. Os passageiros no ônibus me olham como se eu fosse um alien verde. Me sinto um alien verde.

Devagar, o clima vai esquentado, a estrada alarga mais e fica poeirenta e seca. As bananeiras anunciam que chegamos à Amazônia. Cruzamos um riacho e de repente estamos num pequeno povoado, nosso ponto final. A biboca onde tomamos a cerveja comemorativa parece uma sucursal do paraíso, apesar do traseiro ainda se lembrar bem do inferno. Cada um ganha uma camiseta atestando que sobreviveu e todos estão um pouco bobos com a própria façanha. Conquistamos o direito de contar vantagem e rimos à toa disso.

* * *

Enquanto terminamos a gelada, o motorista carrega o micro-ônibus encardido com as bicicletas, senta-se e nos espera ao volante.

– E então, prontos para subir a serra? Agora é fácil, vocês já conhecem o caminho.

De repente nada parece mais seguro que estar sobre duas rodas.

5.10.05

Uma vela


Na segunda visita à Bolívia, durante as primeiras filmagens daquilo que viraria Personal Che.

24.6.05

Pôr do sol


... estranho como quase tudo em Dourados, Mato Grosso do Sul, onde a NHK fazia uma matéria sobre a morte de índios por inanição.

7.3.05

Entre quilombos e foguetes



Alcântara, no Maranhão, ficou pequena demais para os descendentes de escravos e o Programa Nacional de Atividades Espaciais

(Uma versão editada dessa reportagem foi publicada no JB)

Raimundo Vieira não é quilombola apenas por herança e sangue, mas também por escolha. Cinco anos atrás, juntou uns poucos pertences numa sacola, deixou o Maranhão em direção ao Rio de Janeiro. Trabalhou por algum tempo – um ano, dois anos, não tem conta certa – fazendo bicos, a maioria como ajudante de pedreiro. Morava na Vila do João. Ouviu funk, pegou algumas gírias locais, mas não agüentou: voltou para Samucangáua, um dos quilombos vizinhos do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA), a poucas dezenas de quilômetros da capital do Maranhão, São Luis.

“Não dá pra ficar vivendo sem controle da vida. Isso não faço. Na Vila do João você obedece a quem manda ou se manda, como eu fiz”, explica, sorrindo da frase bem talhada. Mas o que Raimundo não sabia é que, ao voltar para a terra onde seus antepassados fundaram um quilombo há mais de um século e meio, estaria encontrando outra confusão.

Alcântara parece pequena demais para abrigar o centro de lançamento e as terras de quilombo. De acordo com o Programa Nacional de Atividades Espaciais do governo, até o fim de 2007 deve ser completada mais uma expansão do CLA para receber novas instalações e começar a fazer lançamentos comerciais. E essa expansão pressupõe a retirada de quase 400 famílias de seus territórios originais, que hoje já se encontram dentro da área da base. Mas grande parte do problema não é a simples disputa por terra – é principalmente a luta por permanecer perto do mar.

“O que a gente tem medo é que eles nos mandem para um lugar que a gente não conhece. A gente está acostumado, é nascido e criado aqui, já temos o jeito. Não estamos acostumados no mato, a viver só de roçar, e talvez eles ponham a gente longe da maré”, conta ele, comendo ostras cruas enquanto sua canoa aderna na vazante do mangue. Seu tio, que todos chamam de Zé Preto e tira peixes da rede atravessada num dos canais, completa o coro: “Se eu for pra longe do mar? Aí eu já não vou fazer nada. Vou passar fome. No dia que não tiver não como e no dia que tiver é uma mãozadinha só”.

Os temores dos que estão lotados para a possível remoção – a Agência Espacial Brasileira não dá datas nem certeza de que isso vai acontecer, embora seu presidente, Eduardo Gaudenzi, diga que ninguém sai na marra – não rodam no vazio.



Quando a base foi criada, nos anos 80, mais de 300 famílias foram retiradas sem muita conversa, indenizadas, pagas por benfeitorias e assentadas nas chamadas agrovilas. Nessas vilas encontra-se muito do que falta nos quilombos: poço artesiano, casa de alvenaria, luz, orelhão – e reclamações. Apesar do relativo conforto desses vilarejos, poucos quilombolas gostam de morar aí.

“Me lembro eu pequeno, os pescadores no igarapé e a gente em casa, eles gritavam de lá mesmo pra atiçar o fogo, os peixinhos chegavam pulando”, diz João da Silva, que vive em Espera, uma agrovila. “E hoje não, não tem mais dessa, não. A mordomia acabou. O peixe chega já podre, moído que a gente chama. Tem vez que dá pra a gente aproveitar. Tem vez que vai pro porco”, explica.

Hoje João e os quilombolas desse não-quilombo têm de se programar para passar três dias fora quando vão para o mar, senão a jornada não compensa. “É isso ou comprar do cara do gelo”, conta ele, se referindo aos homens que passam em caminhonetes vendendo peixe aos pescadores.

A indefinição causada pelo impacto da base acabou embaralhando as coisas aqui. Antigamente, receber gente para pescar na “sua praia” era uma honra. Os hóspedes sempre deixavam algum peixe para a vila ou trocavam por farinha de mandioca feita ali mesmo. Agora o dinheiro faz cada vez mais parte da equação e, com a perspectiva de mais gente sobrevivendo dos mesmos mangues e praias, um senso de posse sobre o que antes era comunal começa a se formar.

No forno de farinha instalado à esquerda da casa de Manoel de Jesus Amorim, os moradores de Itapuáua discutem o futuro enquanto alguém bate no rodo a pasta de mandioca espalhada para secar sobre um grande tacho. O tema da base assusta, embora todos estejam relativamente longe dela e a salvo de qualquer relocação. “Não é que a gente não queira que ninguém venha aqui para buscar comida. Mas eu fico preocupado quando olho pra esse mar aí em frente e penso se ele dá conta de dar peixe pra todo mundo. Eu não sei se dá, não”, diz ele.

É essa incerteza que tem caracterizado as coisas em Alcântara. Quilombolas que não moram mais em quilombos. Pescadores comprando peixe. Gente ameaçada de despejo que não sabe quando e se isso acontece. E, primeira e última das dúvidas, para quê, afinal, se manda foguetes lá pro alto de vez em quando.

“Pra trazer peixe aqui pra baixo é que não é”, diz Raimundo, rindo com seus companheiros de pesca, sem saber direito do quê.



GOVERNO TEM POUCAS RESPOSAS E MUITAS PROMESSAS

Mais um episódio da polêmica entre quilombolas e a base de Alcântara vai acontecer nos próximos dias 11 e 12, quando uma comissão inter-ministerial chega à cidade apresentar a lideranças locais os planos de desenvolvimento do centro e da região.

Desde o fim do governo Fernando Henrique Cardoso a ameaça de remoção paira sobre as cabeças de todos aqui, embora nunca tenha se definido oficialmente quando e se ela realmente vai acontecer. De acordo com o Plano Nacional de Atividades Espaciais (Pnae), documento elaborado pela Agência Espacial Nacional, uma nova leva de expansão do centro deve acontecer até 2007 e essa expansão pressupõe a remoção de povoados. Mas a agência afirma que não vai tirar ninguém de sua terra antes de conversar.

"Existindo a necessidade aqui e ali de alguma remoção, ela só será feita com conversa, com um acordo, enfim, junto à comunidade", afirma Sergio Gaudenzi, presidente da AEB. "Não posso dizer quando. Em princípio, vai haver. Depende muito das distâncias que nós vamos precisar para alguns lançamentos. Mas, se precisar, será combinada".

Em 2001, líderes comunitários se uniram e protocolaram uma denúncia contra o governo brasileiro junto à Organização dos Estados Americanos. O planalto respondeu criando – ano passado – um grupo de trabalho interministerial coordenado pela Casa Civil, incluindo pela primeira vez Secretaria Nacional de Direitos Humanos no debate.

O primeiro filhote do grupo está começando a ser propagandeado agora: a construção, do lado do terreno da base de lançamentos, também em território quilombola, de outro centro, um complexo com campus universitário, escritórios do governo, vila habitacional, hotéis, restaurantes, escolas, centro de tratamento de resíduos sólidos, sistema de água, esgoto, energia, hospital, locais para instalação de usinas de biomassa, biodiesel e, segundo se anuncia, muito mais.

O princípio agora, segundo o secretário nacional de direitos humanos, Nilmário Miranda, é trabalhar com o conceito de projetos, e não reparação econômica – tira-se uma casa, dá-se uma casa, como foi feito nas agrovilas. "Se houver um novo deslocamento, tem que ser feito em bases totalmente distintas das de antes", afirma.

O projeto já foi apresentado em Brasília ao governador do estado, José Reinaldo Tavares, e essa semana Gaudenzi parte para o Maranhão para um encontro com deputados, vereadores, comunidade científica, empresários locais e lideranças de Alcântara.

Ele crê que tal projeto será aceito de bom grado pelas comunidades. "Eu não vejo essa hipótese das pessoas dizerem 'nós não queremos nada aqui, queremos que fique como está, nós não vamos fazer coisa alguma'. Acho que dificilmente alguém pensará assim".



MOVIMENTOS COMEÇAM A ARTICULAR RESPOSTA

Ainda não se sabe os detalhes do projeto do governo, mas as principais reivindicações dos líderes do movimento quilombola passam longe de projetos faraônicos. A maioria tem a ver com educação e saúde.

Embora haja escolas mais para o interior, as aulas estão suspensas há tempos e não há transporte para as crianças.

Na questão da saúde o problema é mais grave. Verminoses são tão freqüentes quanto a gravidez precoce e a distância impede que um simples corte seja tratado adequadamente. Quase toda casa de pescador tem uma bola de sebo que, espetada num graveto e aquecida numa vela, cuida de cauterizar na marra feridas mais graves em anzóis, facas e pregos.

Os principais ativistas da região preferem não ser muito enfáticos em entrevistas. Todos optam pelo anonimato, principalmente depois do que aconteceu com a freira americana Dorothy Stang, no vizinho Pará, mês passado. E concordam que uma nova remoção é inaceitável.

"O centro de lançamento quer 62 mil hectares de terra. Isso é muito mais do que o necessário para implantar um centro de lançamento em qualquer lugar do mundo, que é cinco mil hectares", diz um ativista. "Não somos contra a tecnologia nem nada disso, mas as comunidades querem saúde, educação, moradia e não têm. Brasília fica assinando acordos com os EUA, com a Ucrânia e a gente aqui, largado".

27.2.05

A menina de ouro da Maré



(uma versão dessa matéria foi publicada em NoMínimol)

Ganchos
Ela pula seguindo um ritmo que não se ouve. Quando sua mão encontra o saco pesado, o couro que envolve os cerca de 40 quilos de areia vibram como a pele de um bumbo. O saco oscila, ela gira em torno dele, quase se chocando com o menino de braço forte que faz o mesmo ao seu lado, apertados no pequeno ginásio. Não se ouve muita coisa. Só o xiq-xiq das luvas raspando no saco, as correntes que o prendem chacoalhando, e o uf-uf dos diafragmas quando um soco parte do ombro e bate seco no oponente que rebola ágil no ar. De longe, o treinador olha, braços cruzados, ombros pra trás, a testa baixa.

Não, aqui não é o Hit Pit do filme Menina de Ouro, com que Clint Eastwood pretende ganhar uma segunda estatueta de melhor diretor no ringue do Kodak Theatre. Estamos na favela de Nova Holanda, no Complexo da Maré, na academia do projeto Luta pela Paz, da ONG Viva Rio. Morgan Freeman não está aqui para, na pele de Scrap, narrador do filme, repetir à lutadora que “boxe tem a ver com respeito”. Mas não soa necessário. Todos parecem ter vindo para cá sabendo disso.

Ela, no caso, é Manuela Lopes da Silva, 18 anos, vice-campeã brasileira na classe dos 60 quilos. Uma menina de braços fortes e ombro estreito. Ela e mais cerca de vinte meninas, e mais uns 80 rapazes, vêm a esse ginásio três vezes por semana aprender a esquivar, respirar e dar socos. Entre outras coisas.

O projeto foi concebido por Luke Dowdney, que na sua Inglaterra natal foi boxeador e que, voluntariando no Brasil anos atrás, decidiu estudar e ajudar os jovens vivendo em favelas. Depois disso, Luke já foi condecorado por sua rainha e continua tocando outros projetos aqui. O Luta pela Paz já caminha pelas próprias pernas.

Entrando pela Avenida Brasil, passarela nove, é difícil achar a porta do Luta pela Paz. Fica entre uma mercearia e uma loja para animais. A porta, pequena, fica meio escondida por gaiolas à venda. Depois da porta, uma escada estreita e íngreme, coberta de azulejo, sobe até o ginásio propriamente dito. O ringue de treino domina o espaço pequeno e quente. De um lado há três sacos de pancada e alguns aparelhos de musculação, do outro um espaço livre com um espelho na parede. Pouco, além das poças de suor seco e pisoteado no chão, diferencia o espaço de uma academia comum. Na verdade, o espaço também é uma academia comum, atendendo à população das imediações que vem cuidar do corpo. Mas a janela de fora a fora, mostrando uma complicação de tijolos aparentes, antenas de tv e roupas penduradas, não deixa esquecer onde se está e porque.

Jabs
Sentada numa cadeira, muito antes da hora de seu treino, Manuela é uma adolescente tímida bastante comum. Sua história, na área, é realmente comum. Fez várias tatuagens no corpo, engravidou aos 14, e era, como ela mesma fala, “uma encrenqueira”. Uma vez brigou com uma menina da área que estava com medo de perder seu namorado. Tipo de confusão que os donos da área não gostam: atrai polícia e afugenta cliente. No dia seguinte, Manuela não tinha mais onde passar o gel wet look que costuma usar no cabelo. Sua cabeça brilhava no sol, raspada, “para aprender”.

“Olha, não vou mentir pra você. Quando eu entrei aqui, eu queria aprender a brigar mesmo. Aprender a dar socão. Mas demora muito, a gente acaba desistindo disso. Boxe é muito complicado, quem quer aprender a brigar vai pra rua e briga”. Hoje, segundo ela explica, luta cada vez mais e briga cada vez menos. Outra diferença da época em que só queria saber de baile e de zoar – “mas eu ainda gosto de baile, tá? Só não vou sempre” – é que agora ela voltou a estudar, como a maioria aqui.

A lógica do projeto – para a maioria das pessoas, boxe é coisa de gente violenta – parece funcionar. Todos que chegam para o treino, meninos e meninas entre 15 e 25 anos, parecem incrivelmente corteses. Cumprimentam a todos pessoalmente falando seus nomes a quem ao conhecem, contam piadas e riem baixo. Claro, há os que imitam Mike Tyson, mas a maioria apenas olha, quieta. E não há brigas na rua. Quem é pego boxeando fora da academia é expulso. Sem argumentação.

Claro que nada é perfeito. Pouca coisa aqui é, aliás. Leriana Figueiredo, coordenadora do projeto, conta que já houve os que deixaram o “movimento” pra boxear e hoje trabalham. Os que ficaram um pouco, ganharam experiência e disciplina e foram trabalhar. E os que largaram o tráfico, boxearam um pouco, e voltaram pro tráfico. “Nada é perfeito”, diz ela.

Cruzados
Do meio do burburinho de quem deixa o cinema, há casais chorosos com o final triste do filme de Eastwood, estudantes comentando as cenas de luta, Manuela e Leriana. Ela conta que chorou, mas não exatamente pela razão da maioria. “Quando vi aquela cena em que ela entra com o roupão verde pela primeira vez, aquela luta que ela vai pra fora, e o povo fazendo ‘huh-huh-huh!’, lembrei muito da minha primeira luta. Aí eu chorei...”

Ao som de Eye of the Tiger, tema do filme Rocky (segundo Manuela, música do baiano Acelino Popó de Freitas), Manuela entrou nervosa em sua primeira luta pra valer, num ringue em Belford Roxo. Tão nervosa que sua mão direita pifou. “Eu só conseguia manter a guarda. Fiz a luta toda só com a esquerda”.

Parece ser uma esquerda forte, porque Manuela ganhou todos os sets. “Eu quebrei a cara da menina! Ela ficou transfigurada mesmo”, diz ela, meio culpada, meio orgulhosa. “O problema dela é que ela não tinha nenhuma base, ficava com os braços baixos. Aí eu só entrava, só socão direto, no meio da cara”. Contam que a torcida da outra menina ficou com muita raiva, disseram que a luta foi armada, que Manuela só podia ser lutadora experiente. Enquanto ouve os outros completarem sua história, Manuela, ri escondendo o rosto incrivelmente liso para uma vice-campeã.

“Uma coisa que eu tenho boa é a defesa, a guarda. Nunca quebrei nem desloquei o nariz. Mas já sangrou sim. Quando a gente luta aqui, o melado desce!”, diz ela, rindo. “Uma parada que eu faço bem é assim: faço que vou com o ombro esquerdo e tum!, meto um cruzado com a direita. Não falha. Entra sempre”.

Manuela, contudo, prefere discordar de mais paralelos entre ela e a lutadora do filme. “Nossas famílias são diferentes, né? Não tenho aquela mãe horrível. Fui criada pelas minhas avós e uma tia. Meu pai morreu quando eu ainda tinha alguns meses, minha mãe, eu tinha quatro”. Hoje, ela é a do meio de três irmãs – seu irmão mais velho também foi morto, como a mãe. “O cara que matou a minha mãe, ex-marido dela, ainda está por aí. Fizeram nada”.

Diretos
Hoje, contudo, ela não pensa para trás. “Eu olho é pra frente”. E pra frente há Vítor Júnior, Vitinho para todos na academia, que o conheceram desde o começo dos treinos de Manuela, quando ele tinha quase um ano. Hoje, ele tem três anos, um par de ombros sólidos e soca o ar com as luvas da mãe. O quadro é comum a muitas das meninas que vêm aqui, apesar da doutrinação constante nas rodas de conversa que são parte obrigatória do projeto. Há uma boa lutadora que ainda está se recuperando do parto, querendo voltar, e outra, Juliana, a blusa amarela esticada pela barriga de sete meses e o decote estourando de leite. Depois, já virou rotina aqui, as crianças ficam no carrinho enquanto as mães treinam. Há vários protetores peitorais no vestiário.

Vítor pai é um dos monitores do projeto, boxeador também, e já foi vítima dos diretos do filho. “Ele já tirou sangue do nariz do Vitor”, diz Manuela, rindo. “Duas vezes!”. A relação de Manuela com Vitor começou antes do boxe, já com a gravidez de Vitinho, e passa por altos e baixos. Moram juntos mas, como diz Manuela, “vão e vêm”. Leriana, a coordenadora do projeto, diz que, na verdade, “esses dois se amam”.

O papel dos coordenadores do projeto é fundamental. Leriana e Mirian falam com um e outro, dão conselhos, broncas. Vão muito além da gerência de uma academia de boxe, das vagas pra arrumar em escolas próximas e das colocações em empresas que colaboram – não muitas, diga-se a verdade. Segundo elas, é esse trabalho miúdo, quase invisível, que determina se o projeto funciona ou não. “Não dá pra gente pensar só como um ginásio de boxe. Nossa prioridade aqui é que eles estudem. Mas é difícil manter o cartel. Muitos saem porque precisam estudar ou trabalhar. E, há pouco tempo, dois lutadores morreram”, explica Leriana, pra acrescentar, técnica: “projétil de arma de fogo”.

Num canto, Manuela “faz sombra” no espelho, dando pulinhos e socando o ar. A guarda parece estar alta.