17.8.02

Memórias de um guerreiro islâmico (e americano)



My Jihad
De Aukai Collins
Lyons Press
256 Páginas
Sem lançamento previsto no Brasil

(publicado originalmente no JB)

Pele muito branca, cabeça raspada, estranhos olhos azuis e uma longa barbicha ruiva que desce até a altura do peito, a figura de Aukai Collins tem mais de metaleiro que de mujahedin. Mas é exatamente isso que este americano de ascendência irlandesa é: um guerreiro santo - e americano - do Islã, que conhece os dois lados da guerra ao terror. Quantos já treinaram em campos financiados por Osama Bin Laden e colaboraram com a CIA e o FBI?

As cicatrizes de batalha estão em todo lugar: cauterizações, pontos e cortes distribuídos pelo corpo maciço, uma prótese mecânica que substitui o pé direito, perdido na explosão de uma mina terrestre na Chechênia, e, principalmente, um estilo de pensar e escrever que tornam as pouco mais de 200 páginas de My jihad - ''Minha jihad'' - uma leitura perturbadora.

Aukai, nascido no Havaí, criado na Califórnia, convertido num reformatório, e batizado em fogo na Caxemira, Afeganistão e Chechênia, narra no livro seu périplo de campo de batalha em campo de batalha, a camaradagem com os guerreiros do Islã, a decepção com o mundo dos fundamentalistas e também com os serviços de segurança americanos.

''A virada aconteceu depois que saí do reformatório e comecei a freqüentar uma mesquita, mais ou menos em 1992'', contou por telefone ao Jornal do Brasil. ''Uns cristãos trouxeram um bósnio para o nosso templo, mas para todos na mesquita ele era um mau muçulmano. Os sérvios tinham torturado o cara e os muçulmanos de lá lhe negaram ajuda. Foram os cristãos que o trouxeram para os Estados Unidos e para a mesquita. Disse a meus colegas que eles estavam loucos: 'Nós desapontamos esse cara, e não o contrário'. Foi então que decidi que precisava fazer alguma coisa.''

A ''coisa'' era a jihad, luta na qual o Alcorão ordena a todos os fiéis fisicamente capazes que se envolvam, se houver muçulmanos ameaçados em qualquer parte do mundo. Meses depois, Collins estava em Zagreb, tentando – em vão – partir para Sarajevo. ''Eu queria lutar'', diz.

Collins sobreviveu para contar

O americano terminou aceitando o convite de um amigo e rumou para Karachi, no Paquistão, tendo o território disputado da Caxemira como destino. Depois de algumas patrulhas, rumou, junto a um grupo de árabes e paquistaneses, para o Afeganistão.

Lá, conheceu Omar Said Sheikh, um dos assassinos do repórter do Wall Street Journal, Daniel Pearl. Sheikh, hoje preso, já pensava em ir para a Caxemira e fazer reféns, afirma Collins. ''É nesse ponto que eu paro. Vou para a linha de frente, para a luta aberta, mas não faço isso. O Islã proíbe o ataque a civis'', diz.

Nessa época, Collins treina num campo financiado por Bin Laden, mas seu projeto, defender os muçulmanos contra os comunistas no Tajiquistão, falha. Volta, então, para os EUA e, em 1995, vai para a Chechênia. Luta, mata, casa-se, tem um filho – Saifudeen – e perde a perna.

Tantas experiências bizarras dão à voz de Collins uma serenidade e placidez estranhas. Não combinam em nada com o corpo largo de jogador de futebol americano. O tom se mantém no texto, numa maneira quase insensível e seca de narrar episódios hediondos. Collins não poupa o leitor dos detalhes de batalhas, do tédio das viagens, das mortes – de quase nada. É um texto que deve ser encarado não como vindo da caneta de um autor típico, mas de um Jack London ou outro escritor de aventuras. Tanta aridez por vezes realça trechos de ironia mórbida.

Tome-se o exemplo da passagem em que Collins conta seus primeiros dias num campo de treinamento na fronteira paquistanesa da Caxemira: ''Um dia estava sentado numa borda da clareira do campo quando um de meus colegas me chamou. Explicou que o comandante Khalid queria me ver. Deve ser algo importante, pensei. Quando entrei em sua tenda, ele estava sentado em almofadas, ao lado de um assistente. 'Sente-se', falou ele, sério, em inglês. Pensei que estava com problemas. 'Sim', disse. Sim o quê? Decidi rir. Então ele levantou sua perna amputada. Tinha posto no coto uma meia preta com dois olhos brancos desenhados. Parecia a cabeça de uma ovelha. Então, seu assistente começou a cantar. 'Ba, ba, ovelha preta, você tem alguma lã?', cantava ele com um forte sotaque urdu. Khalid mexia a perna como se fosse a ovelha que cantasse. 'Sim senhor, três sacos grandes!'. Fiquei olhando aqueles dois homens estranhos. Os olhos do assistente brilhavam. No fim da música, os dois urravam de tanto gargalhar.''

Collins acerta na organização do livro. A primeira parte contém suas idas e vindas no mundo da jihad internacional, partindo de um reformatório em San Diego para o encontro dos homens de Bin Laden, nome a que os americanos se habituaram depois de 11 de setembro. A terceira fala de seu período na Chechênia, concentra o grosso da ação. É na segunda que o brutamontes revela sensibilidade, ao contar, em magras páginas, sua infância e juventude. As frases se alongam, um adjetivo surge aqui e ali, e Collins se permite refletir enquanto escreve. Os parágrafos que narram o assassinato de sua mãe – que terminou boiando num pântano próximo de casa, ''suas mãos longilíneas comidas pelos pequenos caranguejos que eu pescava com um puçá'' – têm uma cor dolorida e intensa.

O estranho Collins agora espera o dinheiro dos direitos autorais do livro num pequeno apartamento em Baltimore. ''Minha vida anda uma m... total'', diz. Mas voltaria para a Chechênia, por exemplo? ''Claro, assim que conseguir o dinheiro'', afirma rápido. ''A Chechênia é um lugar tão legal!''

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