(publicado em NoMínimo)
“Lendo Lolita em Teerã” começa de forma prosaica. Azar Nafisi, sua autora e personagem principal, busca livros para a aula de literatura inglesa. Gatsby? Não. Lolita? Semana que vem talvez tenha uma cópia. Talvez. São todos autores proibidos, mas ela só pensa em conseguir os livros que, em breve, serão discutidos com uma pequena classe de alunas, em sua casa, algo clandestinamente.
É exatamente nesse trânsito entre prosaico e político – a política vivida mais rente ao chão, longe de idealismos e clichês – que “Lendo Lolita...” interessa. Por isso e porque concilia o dito “rente ao chão” com uma nada rasteira reflexão sobre o papel da arte na vida das pessoas: a metáfora de Lolita como sendo, essencialmente, qualquer ser humano vivendo sob o autoritarismo. O destino parece ter empurrado Azar Nafisi para esse jogo entre o rasteiro e o mais alto.
De uma família de intelectuais, voltou para o Irã logo depois da revolução. Saiu de lá nos anos 90, quando um cheiro de reforma parecia se apresentar - contramão que uma simples explicação não resolve, mas algo de que o livro dá conta com graça. De seu exílio voluntário em Washington, a escritora conta, por telefone, seu périplo através de uma revolução, um exílio e 50 semanas na lista dos mais vendidos de “The New York Times”, e garante que as festas da juventude iraniana hoje fazem tanto parte do jogo político quanto os protestos de sempre: “Esse é o campo de batalha”.
Não há uma certa ironia no fato de “Lendo Lolita em Teerã”, que começa mostrando sua busca frustrada por livros, poder ser achado, ser quase um best-seller, em toda parte?
Mesmo em Teerã cópias xerox são passadas de mão em mão! Que posso dizer? É a grande ironia da coisa. Mas veja, de certa forma, isso prova um ponto fundamental de “Lendo Lolita…”: as narrativas têm muito poder, muito mais poder do que a realidade. O que não consegui no Irã, consegui falando do Irã. A ficção é incontrolável, imperiosa. A ficção suplanta a urdidura da realidade porque só opera dentro da lógica que ela mesma estabelece. Ela rói o real.
Como a senhora descreveria a situação atual? Segundo a imprensa, o governo está duro como sempre. No entanto, quando se conversa com iranianos – principalmente os jovens –, ouve-se que o regime anda mais calmo no último ano e meio. Contam até que a polícia de costumes está aceitando subornos para deixar festas mistas correrem soltas.
A situação é arbitrária, não há dúvida. Como eu digo no livro, tudo são momentos de estiagem no meio do temporal. É verdade, as pessoas sentem menos medo agora, ainda que haja repressão. Um dos meus estudantes aqui de Washington voltou do Irã agora e disse que o regime está endurecendo de novo. O melhor é que os jovens de agora têm menos capacidade de sentir medo, esse medo que nos faria obedecer e nos esconder num mundo privado, interno. Esses jovens, que o regime chama de filhos da revolução, eles vão para a cadeia desde muito cedo – e por uma mecha de cabelo que sai do xale, por usar batom, por ouvir música americana. Eles perderam o medo.
Quais as conseqüências dessa falta de base popular do regime?
São duas: a principal é que agora há constantes divisões dentro do governo, gente que acaba se juntando aos setores independentes e assume uma posição crítica poder constituído. O segundo efeito, todavia, é que os setores duros do regime, bem, eles estão mais duros e fortes, tentam se agarrar ao poder. Fazendo um balanço, eu diria que o Irã é muito avançado em matéria de instituições culturais e sociais. São muito sólidas e resistiram a 25 anos de revolução. Dito isso, e lamento completar com o que vou dizer agora, acho que alguma dose de violência será inevitável. O regime achou que moldaria os filhos da revolução e uma forma que sabia que não conseguiria conosco – sempre fomos considerados casos perdidos (risos). Mas esses garotos não se moldaram aos “pais”, ou seja, ao regime. Eles estão se rebelando.
Mas que rebelião é essa que não se vê tanto nas ruas?
Não é nem algo institucionalmente político, como era com a minha geração, embora o seja de uma outra forma. Esses meninos não tiveram direitos individuais. É isso que eles querem, esse é seu campo de batalha. Claro! Liberdades individuais são impossíveis nesse regime.
Como se dá essa luta?
Veja as festas. Festas mistas, com álcool e sabe-se lá mais o quê (risos). São coisas que fico sabendo através de meus alunos e ex-alunos… Dávamos festas nos anos setenta, havia esse espírito, mas as festas de hoje são coisas que nunca imaginei (risos)!
Mas não há um perigo em reagir assim, uma certa inconseqüência?
O pior perigo é entrar nessa espiral de simples reação. Querer tudo que eles não te dão. Temos de ser mais críticos, ver coisas boas e ruins. Me lembro de quando deixei o país, uns sete anos atrás: eles não eram tão críticos como a minha geração foi. Víamos os EUA, por exemplo, de uma forma muito mais questionadora, a religião de uma forma mais branda. Hoje eles acham tudo que é americano maravilhoso e têm horror a religião, a coisa acabou trabalhando no sentido contrário ao desejado pelo regime. E nem acho que seja necessário, embora ache horrível quando a religião vira ideologia, como é nosso caso. O que quero dizer é que a pura reação é muito perigosa. Veja o que aconteceu com o fim da União Soviética!
Como vão suas alunas do grupo de estudo retratado em Lolita?
Duas delas estão aqui nos EUA e é bom vê-las dando conta de si mesmas. Uma coisa que acho muito curiosa é que esses meninos, quando vêm para cá, entendem melhor ainda esse ideário americano de cultivo da liberdade e busca da felicidade. Como o batom, o namorado, tudo leva à cadeia lá no Irã, eles parecem muito mais preparados a ver esses ideais por inteiro, valorizá-los quando estão aqui. Elas sabem o que é – adoro essa expressão e a usávamos muito em Teerã – a busca pela felicidade. Não se pode encarar essa tarefa de forma superficial, rasa, como vejo muitos jovens americanos fazerem. Há pessoas que morrem por isso em alguns lugares do mundo. A felicidade não é assistir a reality shows e Britney Spears.
Para quem saiu de um regime em que a dimensão pessoal é tão reprimida, a onda dos realities não chega a ser um choque bem-vindo, uma exposição do pessoal que é impossível lá?
Olhe, gosto das sitcoms porque posso ver a imaginação de alguém ali. Há alguém por trás daquilo, e isso é inegável. Mas, nos realities, me incomoda essa dimensão voyeur, abelhuda, que é praticada. E todo mundo está nisso: Donald Trump, Paris Hilton…
Muitos traçam um paralelo entre essa exposição do pessoal nos realities e a que acontecem nos blogs de Internet. Seria a manifestação de um interesse contemporâneo pelo comum, pelo cotidiano.
Mas acho que há uma enorme diferença! Nos blogs, você não vê a pessoa, não há essa dimensão corpórea. Também há uma interface ali que não é só gráfica, é criativa, constrói-se algo ali. Presto cada vez mais atenção nisso. É uma ferramenta genial, que pode ser usada ou abusada, como todas, mas me encanta o uso que ela pode ter para se discutir e debater coisas. Os iranianos estão ocupando esse espaço, usando a Internet como fórum para discutir o privado. É fundamental discutir o privado com os outros. Assim como a democracia, os direitos humanos. Isso tem de passar também à esfera pública, principalmente no Irã.
Mas os blogs são o bastante?
Não, você também precisa da presença física. Precisa-se estar lá. É diferente. Mas é uma saída intermediária. Os blogs são muito úteis, são um lugar onde o regime não entra. O ruim é que em algum momento você precisa passar da discussão para a prática. Aí é que acontece a frustração, porque você acaba vivendo numa terra de sonhos. As aulas retratadas no livro eram assim também. Mostrávamos nossas roupas umas para as outras, discutíamos amores, debatíamos política. O mundo fora do quarto passava a ser quase irreal, etéreo para nós. E o baque, quando “voltávamos”, era sempre enorme.
De volta ao mundo real, novas eleições presidenciais acontecerão no Irã em breve. Em 2001, você disse que seria bom que os iranianos, mesmo os jovens, votassem em Mohamed Khatami para verem que ele não mudaria nada. Que o voto, em última instância, não mudaria nada.
As pessoas já mostraram esse desencanto com os reformistas nas últimas eleições parlamentares. A fé no voto está indo embora, se desmanchando. Espero que a fé numa saída pacífica, gradual, em direção à democracia não desapareça junto. Khatami me desapontou muito: falsificou uma suposta reforma desenhada para não mudar nada. Há outros fatores: a juventude quer festa, alguns se preocupam em ganhar dinheiro, não é “política” per se. Tem, claro, um fundo político, mas o voto não é mais tão importante na atual conjuntura.
O que se fez das meninas dentro do grupo de estudos?
A maioria está no exterior. Uma chegou aqui aos EUA mês passado. Uma está na Califórnia, outra no Canadá… uma virou editora. Editora em Teerã. Mas essa eu nunca achei que sairia do país. É Mashid.
Editar livros em Teerã não parece combinar com uma menina que era descrita pelas outras do grupo como feita de porcelana.
Estou muito orgulhosa por ela. É maravilhoso como ela agüentou toda a pressão vinda de cima, de seu chefe, da empresa, daquele entorno todo. Está publicando livros!
Seu trabalho é muito ligado ao de Marjane Satrapi, autora de “Persépolis”. A senhora vê esses paralelos?
Ambas narramos. Narramos a distância, em mais de um sentido. Eu, por exemplo, não queria que “Lendo Lolita...” fosse tanto uma memória minha quanto acabou sendo. Já Marjane impõe essa certa distância de um jeito fabuloso, com aquele humor ácido. E de forma altamente inesperada, tanto no Irã, onde sequer se considera fazer quadrinhos com aquela profundidade, como aqui no Ocidente. Há um problema com a maioria dos livros sobre o Irã. É que eles são – todos – muito sérios e sisudos. E Marjane escolhe justo os comics para retratar aquelas situações aterradoras. É sensacional.
O uso do humor torna a situação mais real?
Sim, claro. Ocorre um fenômeno curioso: as pessoas que me entrevistam geralmente têm muita dificuldade em lidar com isso, com o humor e com situações intermediárias. Eles querem juízos. Me perguntam: “Mas a situação no Irã vai melhorar ou piorar?”, “O regime é bom ou mau?”. E a coisa, definitivamente, é muito mais complicada.
Como assim?
Houve um caso espetacular, o da comédia “O lagarto”, um filme sobre umladrão que se faz passar por um clérigo. As autoridades do país deixaram o filme ser feito, mesmo sabendo do que se tratava. Então, quando a comédia estreou, com aquele conteúdo explosivo, abriu-se uma polêmica enorme. Proibiram o filme. Mas aí é que ele fez ainda mais sucesso! Todos queriam
saber que comédia era essa.
2.11.04
Jovens iranianos caem na gandaia
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