24.12.00

Uma nova face para os mercenários

Firmas privadas de serviço militar buscam serviço em regimes legítimos

(Publicada originalmente no JB)

A primeira coisa que se pensa quando se fala em um mercenário é um tipo sem escrúpulos, cheio de cicatrizes de guerra, armado até os dentes e disposto a matar em troca do melhor salário. A imagem tem fundamento: nos anos 60 e 70 verdadeiros genocídios foram cometidos pelos cães de guerra, principalmente na África. Os últimos anos assistiram uma queda aguda nesse mercado da morte e a ascensão de firmas particulares, as chamadas PMCs - sigla em inglês para Private Military Companies (companhias militares privadas).

Estas empresas oferecem serviços que vão desde a instrução de cadetes novatos na arte da guerra até o mais cruento combate. São empresas dispostas a alugar seus talentos militares não por uma causa, mas por dinheiro.

O negócio é obscuro e não se fala explicitamente em cifras, serviços e clientes. Muitas dessas companhias, contudo, podem ser encontradas em vistosos sites na internet. Desnecessário dizer, é rara a menção de termos como ''guerra'' e ''combate'', substituídos por expressões como ''transição para a democracia'' e outras similares. O sigilo é grande mesmo entre as empresas que admitem publicamente que fazem ''operações especiais'', como a inglesa Sandline.

Sigilo - Michael Grunberg, um dos diretores da empresa, se negou a informar ao JB os locais onde a empresa atua no momento. ''Nossos contratos são feitos em regime de sigilo com os governos que são nossos clientes. Tudo que posso dizer é que atualmente trabalhamos em dois continentes'', declarou por telefone o executivo, sem entrar em detalhes. Grunberg garante, contudo, que a seleção dos clientes é rigorosa. ''Trabalhamos somente para governos legítimos e eleitos democraticamente.'' Grunberg esclarece que sua empresa não trabalha contra os interesses do governo inglês ''e, em última instância, contra nenhum governo'', repetindo o coro de outras empresas contactadas. Uma advertência do governo inglês desencorajou que a firma prestasse ajuda a rebeldes de Kosovo.

A indústria estabelece suas próprias regras. ''As companhias maiores tendem a ser mais éticas, mas há outras - e muitos indivíduos - que desafiam a lei'', explica o cientista político Doug Brooks, do Instituto Sul-Africano de Assuntos Exteriores, um especialista nas PMCs. Essas firmas menores se ocupam de tarefas como limpeza de campos minados e segurança de instalações industriais, mas sua menor visibilidade as exime de compromissos humanitários que impediriam empresas maiores de aceitar certos trabalhos.

O efeito dessas companhias na paz, e não só na guerra, é objeto de apaixonado debate. A quem essas empresas prestariam conta? Enquanto a legitimidade de um exército regular é proporcional à de seu governo, as PMCs buscam exclusivamente o lucro.

A ONU é uma das primeiras a atacar essa atividade, embora a eficiência de suas próprias tropas de paz seja questionada no mundo todo. Uma convenção que está a uma assinatura de entrar em vigor põe a atividade das PCMs e dos mercenários fora da lei. Muitos argumentam, entretanto, que se a ONU cuidasse da política e deixasse a parte operacional nas mãos de PMCs, os conflitos em que há intervenção militar do organismo poderiam ser terminados em alguns meses.

Há casos para justificar tanto a defesa quanto o ataque. A firma sul-africana Executive Outcomes (EO) foi acusada de abusos graves em Angola. Na Colômbia, o problema nasce da promiscuidade entre Exército e forças paramilitares, envolvidas até o pescoço em abusos. Há pelo menos uma firma, a americana MPRI, prestando serviços de instrução para o Exército, e o intercâmbio deve aumentar com o início do Plano Colômbia, segundo Robin Kirk, relatora do Human Rights Watch no país. Outras sete firmas similares atuam na Colômbia.

Mas alguns exemplos mostram que as PMCs podem contribuir para a democracia. Um batalhão de 600 homens da EO praticamente terminou a guerra civil que sacudia Serra Leoa em 1997, possibilitando a realização de eleições e a entrada das tropas da ONU. Além disso, o conhecimento militar dessas empresas é útil para garantir a segurança de missões humanitárias e desmontar minas que continuam a aleijar e matar todos os dias na África.


MERCADO DE AÇÕES

As empresas privadas de serviços militares se valem do conhecimento de oficiais da reserva dos melhores Exércitos do mundo em suas atividades. Seus principais serviços são:

INSTRUÇÃO: As empresas empregam militares de primeira linha para ensinar a Exércitos de outros países técnicas especiais como contra-inteligência, táticas antiterrorismo e liderança. Há denúncias de que as técnicas obtidas estão sendo repassadas para milícias paramilitares responsáveis por graves violações de direitos humanos na Colômbia. Países da África e do Leste Europeu também mantêm programas similares, oferecidos geralmente por firmas americanas.

SEGURANÇA: Os clientes geralmente são multinacionais petrolíferas ou mineradoras que operam em locais de conflito. Em alguns casos, a própria presença dessas empresas em áreas consideradas sagradas por povos nativos deflagra o conflito. Já foram registrados incidentes dessa natureza com a Shell na Nigéria e com a British Petroleum na Colômbia.

COMBATE: É a modalidade mais radical de atividade dessas companhias. Utilizam a infraestrutura militar existente e atuam em pequenos grupos que aumentam o poder de fogo de exércitos locais. Atualmente, 12 funcionários de uma companhia trabalham a serviço do governo de Serra Leoa. Em Angola há notícia de graves abusos dos direitos humanos no curso de uma ação deste tipo.


MATANDO PELA PAZ A ÁFRICA

O caso de Serra Leoa mostra como os novos mercenários podem ser úteis para a paz. O país atravessava uma guerra sangrenta desde o início da década de 90. Em certo momento, considerou-se chamar a ONU para conter a onda de crimes bárbaros perpetrada pelos rebeldes da Frente Revolucionária Unida (FRU).

Em 1995, o governo contratou um batalhão de 300 homens da firma sul-africana Executive Outcomes para acabar com o conflito. Por cerca de US$ 2 milhões mensais e trabalhando com o Exército local, ela pacificou o país em pouco mais de um ano. Realizaram-se as primeiras eleições democráticas em décadas, enquanto os rebeldes ficaram acuados numa parte isolada do país. A semanas de uma provável vitória final, a Executive Outcomes foi convidada a deixar o país, em parte devido à pressão internacional. Três anos depois, dez mil pessoas já morreram.

Atualmente, a missão da ONU afirma que precisará de mais de 20 mil soldados para resolver o problema. A um custo de US$ 3 milhões mensais, segundo o professor Doug Brooks. Mais de uma dezena de capacetes azuis da ONU foi tomada como refém pela FRU. O resgate teve de ser feito pelo Exército inglês - e com a colaboração de mercenários.

O episódio mostra falhas no modelo das ações de paz da ONU. Não há uma força constantemente mobilizada e eficiente. Cada vez que uma tropa de paz é necessária, a corrente burocrática de pedidos entre o organismo e vários países do mundo retarda o desembarque, muitas vezes com conseqüências trágicas.

''As PMCs são mais baratas e eficientes. O simples fato de que elas conseguem cumprir as missões de paz já justifica seu uso'', garante Brooks. O especialista, contudo, defende que a a ONU mantenha seu ''papel político'' na resolução de confitos. Uma ação conjunta, afirma, poderia evitar novos genocídios como o de Ruanda, em 1994.

De acordo com dados apurados pelo JB, a Executive Outcomes chegou a ser sondada pela ONU para resolver o problema de Ruanda. Segundo uma análise da empresa, ela poderia armar uma operação em duas semanas e terminar o genocídio em seis. O massacre se estendeu por dois meses, deixando um saldo de um milhão de mortos e 2,3 milhões de refugiados.

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