Entrevista SÉRGIO VIEIRA DE MELLO
(Publicada originalmente no JB)
Depois de amanhã, os timorenses vão comemorar um agridoce aniversário. Há dois anos, o Timor Leste escolheu a independência da Indonésia, que invadira a ex-colônia portuguesa em 1975. A celebração nas ruas foi interrompida por uma represália de milícias pró-integração, responsáveis por um banho de sangue.
Este ano, Timor finca o pé na democracia: irão às urnas na quinta-feira para escolher os 88 representantes que redigirão a Constituição do país, pavimentando a estrada para as primeiras eleições presidenciais do Estado recém-nascido. Supervisionando tudo está o brasileiro Sérgio Vieira de Mello, de 53 anos, 32 deles na ONU.
Antes de ir para o Timor - na primeira vez que a ONU toma para si a ambiciosa tarefa de criar um país - o diplomata, que já passou por lugares como Sudão, Moçambique e Bósnia, foi o primeiro administrador de Kosovo, depois que as forças iugoslavas deixaram a província. De Díli, Vieira de Mello falou por telefone ao Jornal do Brasil sobre o orgulho de entregar o Timor Leste à democracia e sobre sua proximidade com um dos maiores líderes do país, Xanana Gusmão, que anunciou no sábado estar disposto a concorrer à presidência.
- O pessimismo é um resquício do massacre de dois anos atrás?
- É, e do Timor de 1974 e 1975, porque para os timorenses política sempre foi sinônimo de violência. O que nós tentamos nessa primeira fase da transição e principalmente desde o inicio de 2001, com a campanha de educação cívica e as comissões constitucionais que criamos em diversos distritos, foi justamente mudar essa mentalidade, essa percepção da vida política como sendo necessária e inevitavelmente violenta. A população reagiu muito bem. Tanto que, em julho, quando viajei pelos distritos do país antes da reunião do Conselho de Segurança da ONU em Nova Iorque, levei representantes dos partidos políticos comigo. A população, incluindo as pessoas mais humildes, nas partes mais remotas do país, exigiram que os partidos políticos respeitassem o pacto de unidade nacional e, principalmente, que jamais usassem métodos violentos para conseguir objetivos políticos.
- Como o senhor se sente entregando o Timor pela primeira vez à democracia?
- Eu me sinto orgulhoso da minha organização, que geralmente é criticada em suas operações de paz. Acho que desta vez o Conselho de Segurança nos deu um mandato viável, realista, e também os recursos necessários para implementar esse mandato, talvez o mais ambicioso na história das Nações Unidas. Afinal, estamos aqui com plenos poderes executivos e legislativos e inclusive com controle sobre a administração da Justiça. Nunca antes uma operação da ONU tinha recebido um mandato dessa natureza. Não posso me queixar porque os meios foram proporcionais à missão.
- Como o senhor avalia o processo de transição para a democracia, iniciado em 1999?
- Acho que a paz, a estabilidade e a tolerância que prevalecem neste fim de campanha eleitoral são a melhor resposta à pergunta. Todos duvidavam, até os próprios timorenses, da sua capacidade de gerenciar um novo processo político, uma campanha eleitoral, o registro civil e eleitoral, a formação de novos partidos políticos, sem que isso descambasse para violência, mais sangue e mais sofrimento para a população. É quase incrível, portanto, o que estamos vendo nestas últimas semanas. Isso demonstra que, se os timorenses não sabiam o que era exatamente democracia, certamente estavam fartos de saber o que não era democracia. Apesar de nunca terem tido uma experiência direta de vida democrática durante o período colonial ou nos últimos 24 anos de ocupação indonésia, eles sabiam o que era o contrário da democracia e isso os preparou. Foi talvez a melhor educação cívica que eles poderiam ter tido.
- Quais são os principais desafios do país?
- Além de um processo democrático sustentável e das instituições democráticas que estamos criando no Timor Leste, o primeiro grande desafio é econômico e social. O Timor já era, em 1999, uma das províncias mais pobres e atrasadas da Indonésia, e ainda foi devastado e arrasado em setembro daquele ano. Obviamente o país ainda não chegou a um estágio de desenvolvimento econômico que nos permita resolver o problema do desemprego, que ainda é muito sério em centros urbanos como Díli, onde a população dobrou desde agosto de 1999. Estamos com mais de 130 mil habitantes aqui. Em agosto de 1999, havia 68 mil.
- A que se deve esse crescimento?
- A dois fenômenos. Um deles, bem conhecido dos brasileiros, é a migração de zonas rurais para os centros urbanos. Além disso, as pessoas deslocadas em 1999, seja dentro do Timor Leste, seja na parte ocidental da ilha, ao regressarem, em vez de voltarem para seus distritos de origem, ficaram em Díli, pensando que seria mais fácil encontrar emprego. O desafio econômico será o maior e mais prioritário para o segundo governo de transição que, vou nomear em setembro. Mas, a médio prazo, as perspectivas são boas. O Timor Leste pode se tornar, em dois ou três anos, auto-suficiente em produção agrícola. Poucos países podem aspirar a esse luxo. E o Timor até hoje não explorou a indústria da pesca, apesar de estar cercado pelo mar. A produção de café também pode ser dobrada ou triplicada, de acordo com peritos brasileiros que estiveram aqui semanas atrás. Além disso, o Timor dispõe de recursos naturais, principalmente o gás natural e o petróleo do Mar de Timor. A médio prazo, este país poderia se tornar uma sociedade próspera. É essa esperança que vai animar os timorenses a suportar essa fase intermediária, que vai ser muito muito difícil.
- Há outros desafios?
- O segundo desafio será a consolidação da nova administração pública. Nesse setor também partimos do nada, da tábula rasa que encontramos em novembro de 1999, com uma administração pública em colapso total, colapso de recursos humanos e colapso físico. Desde o início do ano passado já conseguimos recrutar mais de dez mil funcionários públicos. Todos os quadros médios ou superiores da administração indonésia eram indonésios ou timorenses que se refugiaram na parte ocidental da ilha. Nossa administração ainda é rudimentar em certas áreas, ainda é muito vulnerável. O terceiro desafio é o da reconciliação. Mas eu acho que esse desafio será mais fácil superar no Timor do que, por exemplo, nos Bálcãs, na Bósnia, na Croácia e em Kosovo, porque não existe ódio aqui. Nunca houve uma guerra civil no Timor Leste. O que houve foram excessos cometidos por milicianos treinados, doutrinados, armados, organizados e comandados por não-timorenses. Nosso processo de reconciliação, de mãos dadas com Xanana Gusmão, vai no sentido de incentivar até os chefes de milícias que se encontram na parte ocidental da ilha a regressarem e dialogarem com a população que eles vitimaram, a aceitarem um processo judicial justo, que respeite os direitos humanos. Para aqueles que não cometeram crimes graves ou crimes de sangue, as comissões de verdade e reconciliação permitirão que sejam reintegrados nas sociedades locais. Alguns crimes que certamente seriam punidos com 10 ou 15 anos de prisão poderiam, no caso do Timor, levar a uma punição correspondente a seis, nove ou 12 meses de serviço comunitário. Esse processo está bem encaminhado. Eu tenho certeza que os timorenses mais uma vez demonstrarão maturidade. Muitos já regressaram e não foram castigados. Pelo contrário: foram muito bem recebidos e agora levam uma vida perfeitamente normal.
- No sábado, Xanana Gusmão anunciou que disputará a presidência. O que o senhor espera caso o país seja governado por ele?
- A decisão de Xanana é bem-vinda, foi muito oportuna. Concorrer é a decisão certa. Ainda havia muita incerteza na mente e nos ânimos dos timorenses, que vêem em Xanana um líder carismático, um líder da unidade nacional, um líder que seus próprios inimigos, aqueles que lutaram, votaram e até mataram pela integração com a Indonésia, respeitam. Essa é a peça que faltava no esquema que vou tentar montar depois das eleições, que inclui não só uma assembléia constituinte, mas também um segundo governo transitório, que será, na medida do possível, um espelho fiel do resultado das eleições. Um gabinete inclusivo, e não exclusivo, no qual eu também gostaria que Xanana tivesse papel ativo. Seria uma capacitação para quando ele assumir as funções de presidente caso seja eleito pelo povo. Algo sobre o que, a meu ver, não resta dúvida.
- Uma declaração de independência em 28 de novembro, como anunciam líderes da Fretilin, poderia criar problemas?
- Não. A posição da Fretilin sobre a data da independência é de princípio. A república de Timor Leste foi declarada unilateralmente em 28 de novembro de 1975. É uma data histórica, tem grande importância emocional, mais que política, para os timorenses. Nada impede que a Fretilin proponha o dia 28 como data nacional na Assembléia Constituinte. Mas isso não quer dizer que o país iria se tornar independente no dia 28 de novembro de 2001. Qualquer líder da Fretilin sabe que isso não seria desejável, que seria prematuro. O processo político de transição não estará concluído, a Constituição possivelmente não estará redigida em novembro. E se a Constituinte optar por um sistema presidencial ou semi-presidencial, vamos ainda ter que organizar eleições presidenciais. Os timorenses acreditam, e têm toda a razão, que o primeiro presidente do país deve ser eleito pelo povo, diretamente. Tudo isso nos leva a, no mínimo, março ou abril do ano que vem.
- O senhor já serviu em Bangladesh, Sudão, Chipre, Moçambique, Peru, Líbano, Camboja e Bósnia, além de ter sido o primeiro administrador de Kosovo designado pela ONU, em 1999. O senhor é o homem que as Nações Unidas chamam para resolver os grandes problemas?
- Não, eu não sou um caso único nem excepcional. Existe uma pequena equipe de pessoas como eu nas Nações Unidas que o secretário-geral [Kofi Annan]emprega em missões desse tipo. Somos o que ele chama de trouble shooters [solucionadores de problemas]. Não sou o único, e tenho muito orgulho de que ele pense em mim de vez em quando como um colaborador capaz de tentar implementar mandatos desse tipo em situações de conflito ou pós-conflito. Mas, repito, não sou o único, nem o melhor.
- O senhor também é conhecido por suas posições independentes. Esse temperamento foi o que o levou tão longe dentro da organização ou chegou a criar problemas?
- Nem um nem outro. Não acelerou a minha carreira, nem me causou prejuízos. Tudo depende de como você diz a verdade. Se for contundente demais, isso obviamente acarreta prejuízo, mas se souber ser moderado e equilibrado, os governos e os membros do Conselho de Segurança sabem aceitar críticas construtivas. Sabem que, quando nós, funcionários de carreira, formulamos essas críticas, não é para enfraquecer a autoridade do Conselho. Pelo contrário, isso fortalece a organização como um todo e também o Conselho.
- O que fica em sua memória depois desses dois anos à frente do Timor Leste?
- O que fica, vai ficar sempre, é a grande dignidade do povo timorense, que sofreu o diabo, mas continua caminhando de cabeça erguida para a independência. Isso é uma fonte de inspiração, de coragem e determinação para todos nós. Tem sido uma experiência extremamente enriquecedora e gratificante, talvez a mais gratificante que as Nações Unidas tenham me oferecido nesses 32 anos de carreira.
- E qual foi o pior momento desse período?
- Os piores momentos foram os meses de julho, agosto e setembro do ano passado, quando as milícias se infiltraram em grande número vindas da parte oeste, penetrando em profundidade no nosso território. Tive receio, naquela época, exatamente um ano atrás, de que assistíssemos a um fenômeno de conflito de baixa intensidade que pudesse acabar com o processo de transição. Mas nossa reação foi firme. Infelizmente tivemos que matar vários milicianos, todos bem armados, com armas de guerra. Outros se renderam e os restantes voltaram para o Timor Oeste. Acho que eles aprenderam uma lição. Eles sabem que se nos testarem de novo vão se arrepender e é talvez por isso que nessa estação não tenham tentado nenhuma infiltração. A fronteira tem permanecido tranqüila e pacífica. Espero que continue assim, porque se eles tentarem entrar, vão se arrepender. Mas aquele foi o momento mais difícil.
28.8.01
''Não existem ódios no Timor''
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