Operação dos EUA contra o terrorismo pode mais uma vez deixar o país sem governo e com poucas alternativas
(Publicada originalmente no JB)
A planejada ofensiva americana contra o Afeganistão tem como alvo o milionário saudita Osama Bin Laden, mas certamente acabará ferindo de morte outro inimigo americano: o regime extremista dos talibãs, que controlam o país e protegem o homem acusado pelos atentados do último dia 11 nos Estados Unidos. E esta perspectiva, por incrível que possa parecer, é assustadora na complicada geopolítica da região. No Afeganistão, como em poucos lugares no mundo, os períodos de vazio de poder fazem tanta ou mais diferença no futuro do país quanto os períodos com governo. Hoje já se pergunta: quem, afinal herdará esse país miserável?
Os americanos sabem que não podem fazer como em 1994, quando, para tentar tranqüilizar a situação, aceitaram que o Paquistão implantasse um regime com o qual tinha afinidades étnicas e religiosas, integrado por estudantes de teologia das madrassas, escolas corânicas paquistanesas. Na época, ao contrário de hoje, poucos sabiam o que significava quem eram os talibãs.
Cautela - Washington parece ter aprendido com os erros do passado. Dá um passo de cada vez, trocando informações. Suas movimentações em direção dos dois sucessores mais evidentes agora - a Aliança do Norte e o antigo rei Zahir Shah- têm sido marcadas pela cautela.
É precisamente essa cautela que tem refreado o impulso americano de dar dinheiro e armas para a Aliança do Norte, de longe a maior oposição organizada ao regime, e sair conquistando posições no país. A Aliança teria a capacidade de tomar Cabul em breve mas Washington sabe que ela nunca seria capaz de governar o Afeganistão. A razão é simples e está no sangue: muitas etnias dividem o país. A Aliança Norte agrupa diversas minorias, enquanto os talibãs são a parte mais articulada da maior etnia afegã, a dos pashtos.
''De uma coisa eu tenho certeza: não há como governar o Afeganistão sem ter os pashtos do seu lado'', afirma Teresita C. Schaffer, do Centro de Estudos Estratégicos Internacionais (CISS), de Washington. A Aliança está ciente desse fato. Tanto que, nos últimos dias, tem se apresentado com o nome de Frente Unida.
''A Aliança está soando muito mais pró-Ocidente agora. Está determinada a derrubar o regime talibã'', diz Keneth Weisbrode, analista internacional com passagem pelo Instituto Internacional de Estudos Estratégicos (IISS). ''Acredito que o papel dos americanos agora seria tirar vantagem disso para capturar Bin Laden e destruir sua rede'', diz ele.
Problemas étnicos - Será difícil para a Aliança conseguir o consenso, contudo. ''Muitos dos comandantes da Aliança, como Israel Khan, de Herat, e Abdul Dostan, de Fary, têm péssima reputação devido à sua brutalidade''. Um governo da Aliança também desagradaria o Paquistão, que é um importante aliado dos EUA na ofensiva antiterror.
A ONU vem advogando há anos um governo de coalizão. Para a sorte de quase todos envolvidos, existe uma versão afegã milenar para esta prática comum na doutrina da resolução de conflitos: a joya jirga.
''É um antigo costume afegão. Trata-se de um encontro de todos os líderes tribais para resolver um problema. Nesse caso, estabelecer um governo legítimo'', explica Weisbrode. É nesse esquema que entra o rei Zahir Shah, deposto nos anos 70. Ele é o maior articulador da nova joya jirga e conta com os o apoio americano.
A coalizão tribal deve contar, inclusive, com membros moderados do talibã - seja lá o que isso signifique. ''Se for para acabar com os campos de treinamento terrorista, acho que os EUA estão prontos até para aceitar algumas pessoas do regime talibã nesse novo governo'', conclui Teresita.
ERROS DO PASSADO
''Se você me pedir para resumir todos os problemas da política americana para o Afeganistão, eu diria que o problema é que até bem pouco tempo não havia qualquer política para o país'', explica ao Jornal do Brasil o analista independente Keneth Weisbrode. ''Eles simplesmente deram as costas para o país em 1989 e deixaram-no descer ao caos''.
A debandada diplomática americana aconteceu poucos meses depois da debandada soviética. Para os americanos, a missão estava cumprida: eles já haviam dado aos mujahideen (guerreiros santos), dinheiro e armas para mandar o perigo vermelho para casa e o império soviético terminou se esfacelando.
O Afeganistão desceu ao caos, como diz Weisbrode, e as diversas guerrilhas que lutaram unidas para expulsar os russos passaram a guerrear entre si para chegar ao poder, acabando com a pouca infraestrutura que restava. Foi nesse cenário que os talibãs, com o apoio de seus ''irmãos'' paquistaneses - e a aquiescência dos americanos - subiram ao poder, derrubando o presidente Burhanuddin Rabbani, que havia sido empossado em 1992.
Esquisitos - ''As opiniões do governo americano sobre o talibã estavam muito divididas desde o início. Alguns otimistas viam neles forças da estabilidade - afinal, os paquistaneses montaram o regime pra isso - mas cinco minutos de conversa com qualquer autoridade do regime era o bastante para mostrar que eles eram um tanto esquisitos e nada parecido com um aliado confiável'', conta o analista. A despeito de tudo isso, a Casa Branca preferiu manter distância.
Tudo isso mudou depois dos atentados às embaixadas americanas na África, em 1998. Era a prova de que o Afeganistão, abandonado, havia se tornado um celeiro de terroristas. Mas a resposta talvez tenha piorado ainda mais as coisas: o presidente Bill Clinton lançou cerca de 65 mísseis contra o território do país. Entre as baixas só havia civis inocentes e suas cabras. Bin Laden, como se sabe, sobreviveu e os ataques terminaram por ajudar a ele e aos talibãs a recrutar mais homens dispostos a tudo. Uma lição que, aparentemente, os americanos não estão mais dispostos a esquecer.
30.9.01
Futuro incerto do Afeganistão pós-talibã
Subscribe to:
Post Comments (Atom)
No comments:
Post a Comment