10.12.05

Outros versos satânicos


(arte de André Mello sobre foto da AP. © O Globo)

Bin Laden ganha a primeira edição de seus escritos. Em inglês e nos Estados Unidos

Messages to the world, de Osama bin Laden. Organização de Bruce Lawrence. Verso, 224 pags. US$ 16,95

America’s enemy in his own words, de Osama bin Laden. Organização de Randall Hamud. Nadeem, 428 pags. US$ 17,95

Douglas McMillan

(Publicada em O Globo)

Há razões para ouvir o que diz um homem como Osama bin Laden? Muitos dirão que não: ouvir um terrorista sanguinário é, na melhor das hipóteses, perda de tempo, já que são seus atos que importam; na pior, é perigoso. Pensamentos de um insano como ele devem ser mantidos longe de todos, em quarentena, para que não contaminem o debate.

O grande problema é que palavras como “insano” ou “louco” não descrevem o Bin Laden que emerge das páginas de “Messages to the world” e “America’s enemy in his own words”, dois livros lançados no último semestre nos EUA que reproduzem pela primeira vez na íntegra boa parte de seus comunicados, entrevistas e opiniões (fatwas , em árabe).

Aqui tudo é ordem e lógica, parece milimetricamente calculado e planejado buscando efeito. Num fenômeno parecido com o do holocausto nazista, Bin Laden prova que a barbárie pode ser conjurada com lógica, ordem, concatenação cuidadosa, alguma sabedoria — e talento poético, até.

Orador inspirado, de múltiplos talentos
O que se vê nos dois livros é um homem capaz de, como um político profissional, citar números e desenvolver um pensamento complexo a partir deles. De criar elegias à luta suicida como um poeta versado nas delicadezas das quadras de Ommar Kayyan. Além disso, um muçulmano com um conhecimento invejável não só do Alcorão e dos hadiths, a história da vida de Maomé, mas também dos principais teóricos, teólogos e juristas que reinterpretaram os textos sagrados. Tudo isso embalado numa retórica potente, de fazer inveja a Che Guevara, emitida num tom calmo, desafetado, em árabe antigo e preciso.

— É claro que não concordo com uma só linha do que ele diz — conta ao GLOBO o americano Bruce Lawrence, medievalista especializado em Islã que selecionou as declarações de Bin Laden em “Messages”. — Mas não dá para deixar de reconhecer seu talento com a palavra. Antes do livro, eu o considerava um radical apenas marginalmente interessante. Depois, percebi o poder da retórica.

A preparação de Bin Laden começou na adolescência, na virada dos anos 60 para os 70, na melhor escola secundarista da Arábia Saudita, a Al Thagher. O Rei Faiçal expandia a rede de ensino numa velocidade vertiginosa, e começou a trazer professores de outros países para ocupar as vagas que se abriam. Justamente nessa época, Síria, Egito e Jordânia purgavam militantes da Irmandade Islâmica, grupo radical oposto ao secularismo de Gamal Abdel Nasser, muitos deles professores.

Bin Laden foi um dos primeiros a entrar no grupo de estudo corânico semi-clandestino organizado pelo novo professor de educação física, um sírio. Primeiro, versos do Alcorão, depois futebol. Com o tempo — a bola deixada de lado — todos os hadiths, o Alcorão inteiro e as idéias de teóricos conservadores, que propunham a volta da sociedade aos valores professados por Maomé.

Com o tempo, Bin Laden se radicalizou, tornou-se um homem de ação, organizando a oposição aos soviéticos no Afeganistão nos anos 80, mas nunca abandonou os livros — outro ponto em comum com Guevara, ávido leitor, mesmo no campo de batalha. Mas não se pense aqui que o saudita é dono de uma interpretação original, majoritária ou mesmo coerente das escrituras.

Lawrence, em suas notas de introdução, é o primeiro a demolir essa idéia. O verdadeiro talento de Bin Laden reside em fazer o texto sagrado dizer o que ele quer, nada muito diferente do que um pregador da pior espécie faz com o Novo Testamento. A diferença é que Bin Laden faz isso com grande engenho.

Embora tenham a mesma matéria-prima, há grandes diferenças entre as duas edições. “In his own words” tem mais textos, sempre declarações e discursos, mas lhe falta a tradução rica de “Messages”, feita por James Howarth, que já havia vertido o próprio Alcorão para o inglês. O maior trunfo da última, contudo, é mesmo Lawrence, que preferiu transcrever não só declarações, mas também entrevistas onde Bin Laden se comunica sob a pressão de um interlocutor. Lawrence também serve notas extremamente informativas, apontando trechos do Alcorão que Bin Laden cita seletivamente e contextualizando determinados textos na história recente.

Duas antologias, não duas apologias
Os organizadores dos dois projetos dizem ter ficado impressionados com a dificuldade de reunir os textos, espalhados por sites mais ou menos clandestinos ou citados aos pedaços pela imprensa. Ambos afirmam ter aceitado o projeto para que mais gente, além de alguns poucos acadêmicos, possa ter uma imagem mais precisa de quem é Bin Laden.

— Há dois problemas em considerá-lo um desvairado. O primeiro é esquecer que ele encara sua luta como uma resposta a atos muito concretos do Ocidente em sua região. São coisas que realmente aconteceram e que são vergonhosas — diz Lawrence, medindo as palavras. — O segundo problema é óbvio: um inimigo inteligente é mais perigoso.

Os trabalhos já atraem detratores. Os tradutores de “In his own words”, todos árabes morando nos EUA, preferiram permanecer anônimos. Já Lawrence afirma que seus emails, correspondência e secretária eletrônica estão “entupidos” de ameaças de gente que considera seu trabalho uma apologia aos crimes de Bin Laden. Algo que não faz o menor sentido para ele.

— Tenho mais medo de Osama agora, depois do livro.

TRECHOS

“FUSTIGAREI MEU CAVALO,/ ME ATIRANDO COM ELE AO ALVO/ Deus, se meu fim estiver próximo,/ conceda-me uma tumba sem enfeite/ de mantos verdes/ Não, deixe que seja a barriga de uma águia/ empoleirada lá no alto, com sua cria/ Deixe me ser um mártir, então,/ vagando pelo alto das montanhas/ entre um bando de cavaleiros/ que, unidos na devoção a Deus,/ se precipitam sobre os exércitos./ Quando deixarem esse mundo,/ deixam para trás a peleja/ e encontram seu juízo final,/ está nas escrituras.”

“BUSH ALEGA QUE ODIAMOS A LIBERDADE. TALVEZ ELE POSSA nos dizer porque nós não atacamos a Suécia, por exemplo.”

“O 11 DE SETEMBRO FOI REALMENTE GRANDE. (...) FALEMOS DOS efeitos econômicos. Como os próprios americanos admitem, as perdas em Wall Street chegaram a 16%. Disseram que é um recorde, algo que nunca aconteceu desde a abertura do pregão, há mais de 230 anos. (...) O volume bruto negociado chega aos US$ 4 trilhões. Multiplicando esse valor por 16%, chegamos às perdas. US$ 640 milhões em perdas, com a graça de Deus, uma soma equivalente ao orçamento do Sudão por 640 anos. E o ataque durou apenas uma hora.”

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