26.11.05

O apocalipse interno de Michael Herr

(Publicado originalmente no Prosa & Verso, O Globo)

Chega ao Brasil um dos relatos formadores do que hoje chamamos de ‘guerra’ e ‘Vietnã’


Despachos do front, de Michael Herr. Tradução e apresentação de Ana Maria Bahiana. Editora Objetiva, 254 pgs. R$ 39,90

"Quando você sai à noite os paramédicos te dão pílulas, hálito de dexedrina como cobras mortas que ficaram tempo demais num vidro. Nunca senti necessidade delas, um pequeno contato ou até mesmo qualquer coisa que parecesse um contato me dava mais pique do que eu era capaz de suportar. Cada vez que eu ouvia alguma coisa além do limite do nosso pequeno círculo cerrado, eu praticamente pulava, esperando em Deus que não fosse o único que estivesse percebendo aquilo. Uns tiros na escuridão a 1 quilômetro de distância e o Elefante se instalava de joelhos no meu peito, me enterrando nas minhas botas sem conseguir respirar.”

É essa intensidade — a intensidade de coisas que não são explicadas, que se sente — o maior trunfo de “Despachos do Front”, de Michael Herr, mais um lançamento da coleção Jornalismo de Guerra que a Objetiva põe no mercado. Na verdade, o livro é tão intenso que explode essas categorias — “jornalismo” e “de guerra” — como fossem de papel. Primeiro porque o livro foi escrito depois de oito anos de metabolização dentro do autor, é um registro “a frio” que zomba do pretenso imediatismo jornalístico. E segundo porque o que está em destaque aqui não é a guerra, mas o humano, esse humano em carne viva que as guerras em qualquer latitude e época expõem.

Perversão geral, inclusive das vítimas
Foi outro autor da coleção, o americano Jon Lee Anderson (que contribuiu com o tenso “A queda de Bagdá”) quem deu, na última Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), em julho, uma versão tão amarga quanto precisa do que é a guerra. “Em situações assim, mesmo os inocentes são maus. Não podemos nos enganar: o verdadeiro poder da guerra é o de transferir sua maldade para dentro de qualquer pessoa, mesmo as vítimas”.

Raras vezes em outro período da História tantos homens tiveram a vontade, o poder e a liberdade de, como o próprio Herr descreve, “serem Deus”. Não seria exatamente por isso que Francis Ford Coppola escolheu o Vietnã como cenário de sua versão de “Coração das trevas”, de Conrad, um “Apocalypse Now” que é essencialmente interno, demasiadamente humano?

Não à toa, Herr foi chamado a colaborar com o diretor logo no início do que viria a ser o roteiro do filme clássico. O Vietnã de Herr está lá, inteiro, nos vôos de helicóptero lisos e tensos, na umidade incômoda das plantações de arroz, no horror acontecendo sem muito aviso e tratado com algum descaso apenas porque se tornou banal. E nas pessoas bestializadas pelo ambiente, mas não só por ele.

Pode-se perguntar aqui a validade de considerar esse Vietnã como sendo apenas de Herr. Ele está presente, por exemplo, em “Platoon”, de Oliver Stone, feito muitos anos depois e refém do modelo criado por Coppola com sua ajuda. Mas também está, de forma muito similar, em “Corações e mentes”, brilhante documentário de Peter Davis, que precedeu todos, inclusive o livro de Herr, em alguns anos.

É precisamente aí que o relato de “Despachos”, mesmo tendo sido escrito muito depois dos acontecimentos, se reconcilia com o fio jornalístico. Herr desceu a guerra do Olimpo, despindo-a de cores vivas e heroísmos inventados. A única guerra verossímil naqueles — e nesses — tempos de inocências perdidas. Hoje sabemos que a guerra na TV é um engodo porque aprendemos — não só com Herr, mas muito por sua influência — que as guerras são sujas, enlameadas, tristes. Que não há heróis. De quebra, o americano retratou com pincel fino aqueles anos em que um país pobre do Oriente e os EUA se cruzaram para dar à luz a aberração geopolítica, estratégica, social e comportamental chamada Vietnã.

O engenho do autor está não só no que conta, mas principalmente na forma como conta. A linguagem do livro é também um resultado dessa cruza perversora. Uma mistura de jargão militar com gíria hippie, o choque da poesia beat do rock com o analfabetismo de recrutas com saudade e raiva de casa. Todos os que estiveram lá foram expostos a essa linguagem bastarda, mas poucos, além dos jornalistas, tinham proximidade bastante para ouvi-la e a sensibilidade necessária para admirá-la.

Caminho diferente do de José Hamilton
É especialmente interessante comparar a abordagem de Herr com a de José Hamilton Ribeiro, o decano dos repórteres brasileiros, que cobriu o Vietnã para a revista “Realidade” em 1968. Seu relato, “O gosto da guerra”, republicado na mesma coleção da Objetiva, é em quase tudo oposto ao de Herr, embora ambos sejam intensamente pessoais.

José Hamilton tinha seus trinta e tantos anos quando chegou a Saigon. Estava longe de ser um hippie, ou mesmo de viver a ressaca do movimento hippie . Para o brasileiro, era fácil dizer o que era o Vietnã. O Vietnã era tudo que não era José Hamilton. E é esse distanciamento que faz seu livro funcionar: quando ainda está em vigor, o jornalista reportando o que vê; mas especialmente quando é feito em cacos, pela mina que rouba a perna esquerda do repórter e transforma toda sua objetividade numa subjetividade forçada.

Herr vai em outra direção. Em muitos momentos é impossível dizer onde termina o Vietnã e onde começa o autor. Ele próprio não parece saber ou mesmo querer saber onde está esse limite.

A despeito de todas as comparações com a guerra no Iraque que serão levantadas, de tudo que o livro tem a ensinar a qualquer jornalista, não é isso que conta mais aqui. No dia em que a Guerra do Vietnã ganhar sua história definitiva, o livro não terá valor algum para saber datas, detalhes, nomes. Mas “Despachos” é fundamental para entender o amálgama de paranóia, depressão, bravura, culpa, tédio e burrice que se instala em qualquer pessoa num “teatro de operações”. Não há despachos do front nesse livro. Há despachos de Herr.

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