3.11.05

¡Se juega!



(Uma versão dessa matéria foi publicada na Trip)

Nunca saltei de bungee jump nem vi uma prancha de snowboard fora de uma vitrine de loja. Jamais consegui ficar em cima de um simples skate por mais 20 segundos e acho uma temeridade esse negócio de kite-surf – além de algo que mal consigo descrever. Sou, se um resumo fosse necessário a essa altura, um mané para qualquer coisa que se aproxime de um esporte radical. Mas todo sedentário tem seu momento de revolta. Chegando aos trinta anos, aos 93 gordos quilos e à calvície irremediável, decidi que era hora de tentar algo diferente. Viajei para a Bolívia – que é, afinal, aqui do lado – onde descobri que as pessoas descem de bicicleta aquela que é reputada como a estrada mais perigosa do mundo.

São 65 km de cascalho grosso descendo de La Cumbre, a 4.700 metros de altura, até Coroico, no começo da Amazônia boliviana, 3.600 metros abaixo. A descida dura cinco horas. A estrada é entalhada na pedra, tem em média três metros de largura e o abismo mora ao lado, sem qualquer proteção. Uma queda vertical de 400, 500, até mil metros. Todos os anos a La Cumbre-Coroico some com mais de trinta veículos, às vezes mais de 200 pessoas. O título sinistro não é marketing: foi conferido em 1995 num relatório do Banco Mundial.

O raciocínio que me levou a essa roubada foi simples e saudosista: ao longo de um ano, meu pai tentou me ensinar a andar de bicicleta com psicologia e rodinhas laterais. Não houve jeito. Até que um primo desvairado resolveu me pôr em sua bicicleta (muito maior, sem rodinhas) e me jogar do topo da ladeira onde morávamos. Funcionou, apesar de uns quantos tombos.

Entrei numa das dezenas de agências de turismo em La Paz que oferecem a descida, respirei fundo e disse que queria a La Cumbre-Coroico. Reconhecendo o tipo de longe, o agente sorriu e jogou a psicologia fora.

– Você terrr segurro de vida em seu país? – perguntou num sotaque carregado Jöeck, um alemão assustador que foi morar na Bolívia, onde mudou seu nome para um palatável Juan. – Não? Não se prreocupa, eles oferrecem segurro aqui. Dez dólarr.

Juan Jöeck me passa então um caderno onde posso ver minhas opções. Seguro para perda de um membro custava dez dólares. De vários, 25. Da vida, 30. Um pouco nauseado e já amaldiçoando a idéia da reportagem, devolvo a ele o folheto.

– Eles recomenda, mas não é que você prrecisa ter seguro. O que você faz com a dinheirro se morre, né? – diz ele, soltando uma gargalhada arrepiante.

Fico feliz em saber que Juan Jöeck é apenas um operador terceirizado que não vai estar no passeio.

No dia seguinte, entro no micro-ônibus e partimos para La Cumbre. Escolhi a operadora com a melhor reputação no país, a Gravity Tours. Eles têm bicicletas Kona (me dizem que isso é importante) com freios a disco (me dizem que isso é muito importante) e são dos poucos a fazer manutenção constante de seus equipamentos (eu sei que é muito importante). Enquanto passamos pelas favelas de La Paz a caminho de La Cumbre, o rádio toca Chili Peppers, hip-hop em espanhol e AC/DC. "Highway to hell". Eles têm que estar brincando.

Chegamos ao topo. Às oito horas da manhã faz um frio cão. Três graus. O ar mal entra nos pulmões e estou tiritando antes mesmo de sentir medo. Estamos, afinal, a mais de meio Everest de altura. Nos picos em volta há neve e lhamas pastam não muito longe de onde estamos. Guy, nosso guia para a descida, começa a explicação sem meias palavras.

– Porra-loucas voltam pro ônibus. Fechou alguém, volta pro ônibus. Foi lento demais, desculpe, mas vai pro ônibus. Se você começar a apostar corrida comigo ou com o Jubert (o outro guia) vai pro ônibus. Simples assim. Ser valente aqui significa voar. E isso é uma bicicleta – não foi feita para voar, para quem não sabe.

Guy, um mountain-biker belga que "encheu o saco da Europa", explica então que devemos frear com 70% da roda traseira e 30% da dianteira. Fico pensando em como medir isso quando ouço a revelação.

– Vocês vão descer a uns 60, 70 quilômetros por hora. E é nessa velocidade com que vão acertar o chão se voarem sobre o guidão. Dói bastante. Freiem mais sempre com a roda de trás.

Setenta por cento, trinta por cento, setenta por cento, trinta por cento, fico repetindo como um autista, enquanto tento memorizar qual freio é qual.

Pro santo

Já montados na bicicleta, bebemos álcool hidratado dando um golinho "pro santo" antes. A Pachamama, mãe-terra dos bolivianos, abençoa a viagem. A coisa desce queimando o estômago vazio. O grupo de nove pessoas – britânicos, irlandeses, um islandês, uma amiga colombiana e o alien brasileiro – começa a descer.

O início do caminho é mole. Quatro pistas em mão dupla de asfalto lisinho. Bom para acostumar com a velocidade. Dá até para olhar os paredões de rocha cobertos de neve, lindos, enquanto se ultrapassa um caminhão com facilidade. Guy nos conta depois que nesse trecho descemos sem sentir a uns 80 quilômetros por hora. Mesmo na marcha mais pesada, é impossível pedalar.

Já estou achando tudo lindo quando vejo nosso guia abanando o braço. Presto tanta atenção nele que nem noto o asfalto acabando. Atinjo o cascalho ainda a 70 km por hora. Minha mandíbula treme. O traseiro sente cada pedra. Me assusto. Freio forte. Onde ficam os 70% mesmo? Minha roda traseira levanta. Vejo o chão de frente, em tracinhos rápidos. Jogo o peso para trás e a bicicleta quica e volta a andar em duas rodas, bamboleando. Ancoro a bicha no chão. Tem horas em que estar fora de forma e pesado é uma bênção.

Tem horas que não. Num certo momento, a estrada pára de descer. Fica plana, e começa a subir. Eu me lembro de ouvir que havia "uma pequena subida", mas acho que ignorei enquanto me embasbacava com a paisagem. Não que seja íngreme, mas com a altitude, a falta de ar e de preparo físico, qualquer subida é um sacrifício. Meu pulmão arde depois de cinco minutos. Me afogo a seco. Vou sendo ultrapassado pelos outros. De repente, sinto o vento no rosto de novo. Estou me movendo sem esforço e sem mexer os pés. Olho para trás e vejo Jubert, franzino e boliviano, empurrando a minha bicicleta, pedalando por nós dois. Não satisfeito, ele ainda começa a conversar, e em frases longas. Eu mal consigo dizer "sim" e "não". Mesmo assim, por pena, depois de um quilômetro digo a ele que vou descer e andar até o último cume. Ele assente e fica pedalando do meu lado, muito devagar.

Finalmente acaba a ladeira e damos a primeira parada. Olhamos em volta, a estrada ainda não é muito estreita. Mais abaixo, no vale, vemos uma linhazinha fina serpenteando pela encosta. Enquanto Jubert saca fora minha pastilha de freio, incandescente e já pela metade, e põe uma nova em folha, rezo para não ouvir o que ouço: é, é por ali que vamos descer. Terminamos de comer o chocolate que nos dão e beber um pouco de água, montamos e nos encaminhamos, como diz um dos irlandeses, "para a morte".

É uma matemática desgraçada, e cujo resultado nunca bate. Quanto mais devagar você vai, mais sente cada pedregulho. Mais rápido, menos pedregulho. Se você cai, óbvio, sente cada pedra, e aí faz muita diferença em que velocidade você vai.

No chão
Fez toda diferença pro nosso companheiro da Islândia. Ele alugou o pacote completo: óculos, macacão, calça impermeável, bicicleta com suspensão traseira. Só esqueceu de uma coisa: 30% na dianteira, 70% na traseira. Voou.

Encontramos Albert amontoado no acostamento, a bicicleta no chão. Tinha uns cortes no lábio, a cara estava meio ralada, todos os dentes no lugar. O mesmo não dá para dizer da mão direita. Seu mindinho tinha ganhado uma articulação extra, para fora. Albert evitava falar.



Subitamente todos memorizam qual mão freia só 30%.

A estrada vai ficando mais estreita e mais íngreme. Somos instruídos a andar pelo lado de fora da pista, perto do abismo, longe dos carros e caminhões que sobem. Mal vemos a pista, porque pedalamos no meio das nuvens. Desmoronamentos comem pedaços da beirada grandes o bastante para caber uma bicicleta. Descubro depois que o projeto foi executado por prisioneiros paraguaios da Guerra do Chaco, nos anos 30. Isso explica alguma coisa. Sigo amaldiçoando ser ateu e não saber rezar.

O cascalho vai ficando mais grosso, a estrada continua estreita – e mais íngreme. Os dedos começam a ficar exaustos de frear no talo depois de duas horas. Parece suicida, mas você começa a se acostumar à velocidade e à tremedeira e deixa a bicicleta deslizar quase solta, freando só nas cruvas, que são muitas e fechadas. Passo por algumas das centenas de cruzes que pontuam o caminho. Freio um pouco. E depois esqueço. Desço, diminuindo um pouco quando passa algum caminhão.

Já é a quarta hora no caminho. Entramos agora na fase que Guy descreve como a mais perigosa. A estrada fica mais larga, os ciclistas mais acostumados com a velocidade – e aptos a voar. As curvas fechadas começam a me enjoar. Em algumas há parentes de vítimas sinalizando com bandeiras verdes ou vermelhas se vem alguém, esperando uma moeda.

Vou deslizando pela pista sem ouvir nada mais que o barulho do vento nas orelhas e o tec-tec de um motor distante. Viro à toda numa curva fechada e de repente estou a dois metros de um radiador enorme, com a palavra VOLVO pintada em letras garrafais. Bamboleio, me assusto, desvio, xingo e paro no acostamento. Estou a dez centímetros de um precipício simpático e convidativo. Os passageiros no ônibus me olham como se eu fosse um alien verde. Me sinto um alien verde.

Devagar, o clima vai esquentado, a estrada alarga mais e fica poeirenta e seca. As bananeiras anunciam que chegamos à Amazônia. Cruzamos um riacho e de repente estamos num pequeno povoado, nosso ponto final. A biboca onde tomamos a cerveja comemorativa parece uma sucursal do paraíso, apesar do traseiro ainda se lembrar bem do inferno. Cada um ganha uma camiseta atestando que sobreviveu e todos estão um pouco bobos com a própria façanha. Conquistamos o direito de contar vantagem e rimos à toa disso.

* * *

Enquanto terminamos a gelada, o motorista carrega o micro-ônibus encardido com as bicicletas, senta-se e nos espera ao volante.

– E então, prontos para subir a serra? Agora é fácil, vocês já conhecem o caminho.

De repente nada parece mais seguro que estar sobre duas rodas.

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