(uma versão dessa matéria foi publicada em NoMínimo)
Evo Morales está de tênis, jaqueta pesada de couro e o topo de sua cabeça é um formidável capacete de cabelo índio muito negro. Parece um pouco tenso. Fala baixo ao celular meio remendado olhando pela janela da sacada os muitos repórteres que o esperam no saguão do hotel e, por cima do próprio ombro, uns poucos que estão mais perto, apenas alguns degraus abaixo.
A dois quarteirões dali, na larga Avenida Mariscal Santa Cruz, garis ainda limpam o lixo de folhetos e bandeirolas de uma barulhenta e compacta manifestação comemorando os dois anos da queda de Gonzalo Sánchez de Lozada e protestando contra o racionamento do gás em botijão. Sánchez, que mal conseguia disfarçar seu sotaque americano nos pronunciamentos oficiais, foi tocado do palácio em outubro de 2003 depois de semanas de protestos contra a privatização do gás e do petróleo do país.
As lições de dois anos atrás parecem mais vivas que nunca. A "guerra do gás", como o episódio é chamado, ecoa como um sino de morte na campanha desse 2005. Morales está sempre vestido informalmente, deixando as gravatas para o vice Alvaro García Linera, impecavelmente metido em ternos retos que combinam com sua cara de menino grisalho. Gosta de discursar primeiro em aimara e quéchua, idiomas índios locais, e só então em espanhol. Parece a antítese perfeita para toda a classe de políticos profissionais que a Bolívia viu prometer e fazer muito pior na última década e meia. Não à toa, está com 33% das intenções de voto, sete pontos à frente do segundo lugar, Jorge Quiroga, um juiz gordinho e escanhoado que presidiu o país por alguns meses entre uma queda de mandatário e outra.
Mas mais que indumentária, as lições de 2003 estão escancaradas nos programas de governo: mesmo os partidos de direita, autores do que Morales chama de "saque", propõem taxação pesada sobre o produto, fazendo petroleiras de todos os hemisférios – inclusive a Petrobras, responsável por 15% do PIB do país – roerem as unhas.
Morales, ninguém parece ter esquecido, já fala do gás desde 1997, quando concorreu à presidência pela primeira vez. Logo, ele pode esse ano tomar um passo adiante dos outros candidatos: propor não só que se taxe fartamente o produto, mas renacionalizá-lo, re-comprando a infra-estrutura necessária para sua industrialização e transformando a YPFB numa estatal de petróleo "potente como a PDVSA e a Petrobras".
Não é preciso mais que esse pequeno passo para fazer qualquer dos milhares de executivos estrangeiros no país suar. E para, muitos crêem, ganhar a eleição.
A conjuntura tem ajudado. As comemorações dos dois anos da saída de Sánchez de Lozada foram muito engordadas pelos protestos contra a falta de gás. Filas e mais filas por botijões contados, brigas de tapa ao lado dos caminhões que distribuem o produto, gente mais pobre cozinhando com lenha. Tudo isso tem funcionado como um incômodo lembrete do despautério que é faltar gás no país que tem a segunda maior reserva do combustível na América Latina. E beneficiado Morales.
A coisa parece tão certa que mesmo os que quase nunca se metem de verdade em campanhas já apareceram: um grupo de artistas montou uma coletiva de imprensa para entregar a Morales um manifesto do que a classe espera desse governo "progressista e democrático". Ele desce da tal sacada, distribui sorrisos e segue para a pequena tribuna no saguão que segundos antes olhava desconfiado. Ouve as reclamações, pede desculpas sem muito pudor por não ter dado tanta atenção quanto devia à questão e satisfaz os presentes com suas promessas. A coisa toda termina com uma cantora subindo ao minúsculo palco para interpretar uma ranchera. Um outro artista de bigode daliniano aparece com três taças que enche de vinho de garrafão. Os outros ficam com copinhos plásticos para café. Ergue-se um brinde e Morales já está agarrado ao celular de um repórter de rádio, criticando Sánchez de Lozada e dizendo que "essa lição aprendemos". Todo mundo fica com o copo em suspenso por dois minutos até que a coisa acabe, fios de vinho descendo pelos braços de alguns. O repórter comenta, termina, vai embora, alguns colegas o maldizem entre os dentes, Morales derruba meia taça no chão como oferenda à Pachamama, a mãe-terra dos bolivianos, bebe o resto rápido e sai de fininho. Encurta rapidamente a pé os cerca de duzentos metros que separam o hotel do congresso nacional com uma entourage mínima e quase ninguém o reconhece. É um índio a mais nessa cidade grande.
Pinota para dentro do Congresso e some no escritório da segunda liderança. A secretária diz que "Dom Evo" me espera. Me surpreendo ao encontrar uma pequena turba de jornalistas estrangeiros e dois documentaristas bolivianos. Os que ficam mais para trás na rodinha que se forma parecem amarrotados e cansados. Um deles diz que o maior legado boliviano é sua úlcera, fruto de um ano e meio nas notícias do país. Morales começa a falar e todos ouvem, gravam, anotam e filmam atentamente cada palavra dita de forma precisa, carismática e baixa.
Três anos atrás, falar com ele era fácil. Qualquer tique no sismógrafo político da Bolívia era acompanhado por um comentário seu. O número de seu celular - de seus dois celulares, melhor dizendo - era o segredo mais mal guardado da Bolívia e ele sempre estava disponível a comentar sobre qualquer coisa com uma frase de efeito boa para abrir matérias. Hoje é quase impossível encontrá-lo sem se acotovelar com colegas, sem pôr o gravador ao lado de outro, sem uma breve diplomacia para ver quem fala com ele em exclusivo primeiro.
Não que ele tenha perdido o apetite pelas manchetes. O que lhe falta é tempo, agora que parece prestes a virar presidente. Mas sempre que há uma boa oportunidade, está lá. Como não ir à Cúpula dos Povos, à margem da Cúpula das Américas, em Mar del Plata, para xingar George W. Bush ao lado de Hugo Chávez e Maradona, como fez semana passada?
Depois de alguns minutos, a turba sai e Morales está sozinho na sala comigo, uma jornalista francesa, dois retratos a óleo dele mesmo e um retrato de um general antigo. Vou para o fundo da sala e a repórter acerta com ele detalhes de uma "grande matéria" que sairá pouco antes das eleições num veículo que não consigo ouvir (nota em 2007: era Alma Guillermoprieto, que fez um perfil fantástico para o New York Review of Books). Morales a convence a acompanhá-lo ao Chapare - sua área de maior influência - e, depois de perguntado, diz que não gosta de falar de assuntos pessoais. A jornalista sai e ele discretamente pede à secretária que dê a ela alguns telefones, entre eles o de uma tia em Beni que "o conhece bem".
- E agora, companheiro, em que posso lhe ajudar? - pergunta ele, me chamando com a mão.
Sentamos em lados opostos debruçados sobre a mesa estreita. O rosto de Morales está a um metro, não mais. Lhe pergunto sobre os últimos dias, os protestos, toda a discussão sobre o adiamento das eleições. Ele, sem mover um músculo nem alterar a voz, liga a máquina de retórica.
- Há uma aberta conspiração. Da direita fascista, racista, neoliberal, junto a agentes externos como a embaixada dos EUA. Conspiram e provocam o MAS, o Evo Morales e os movimentos sociais, - diz ele, tratando a si mesmo na terceira pessoa. - Estão preocupados porque hoje temos a grande oportunidade de ganhar com 50% dos votos mais um.
- As pesquisas lhe dão 33%, a melhor delas - retruco.
- Esqueça isso. São pesquisas - diz ele, dando exemplos de eleições passadas onde o MAS, em média, triplicou as estimativas de intenção de voto. - Dizem que estamos com uns 30%. Não quero triplicar de novo. Me basta ter 60%.
Enquanto falava, Morales mal sabia que dali a duas semanas as eleições seriam suspensas e remarcadas para o dia 18 de dezembro uma semana depois, pondo fim a um impasse de meses que pôs em lados opostos o Oriente, região mais plana e à direta politicamente, e o Ocidente montanhoso, onde a retórica "andina" de Morales faz sucesso. Os primeiros, representados por Santa Cruz, pediam há vários meses mais quatro assentos no Congresso, alegando que têm cada vez mais peso econômico e demográfico no país. As cadeiras sairiam de três cidades do Ocidente que, claro, se opuseram. A situação foi finalmente resolvida com a transferência de três vagas do Ocidente para o Oriente, uma a menos que o pedido. Já se discutia essa solução quando ocorreu a entrevista, e Morales parecia mais preocupado com a possibilidade de não haver eleições que com detalhes de assentos e distritos.Crê que vence de qualquer jeito. A menos que aconteça um golpe de estado arquitetado com a ajuda - claro - dos americanos.
- Anteontem estive em Santa Cruz, montamos um pequeno comício com apenas cinco dias de antecedência. Eu não queria. Disse: "vamos fracassar". Chego lá e mais de 15 mil pessoas me esperam. É por isso que estamos seguros. Mas quando um índio tem a possibilidade de ganhar, surge esse tipo de obstáculo. O tema das cadeiras é isso. Querem mais cadeiras para Santa Cruz e menos cadeiras para La Paz, Oruro, Potosí. O que é que muda? Nada muda. Isso é pretexto para postergar a eleição, desagregar os movimentos sociais e unir a direita. É parte de uma jogada da embaixada dos EUA.
Morales está à vontade declamando suas melhores frases de esquerda. Não há freio para atacar os EUA e isso sequer é novidade. Mas a coisa muda quando se pergunta das reservas que se começa a ter no Brasil de um governo "moraleista". Do temor de que também no vizinho comece a faltar gás. Morales é todo cautela.
- Não há razão para medo. A Petrobras é uma empresa do estado. Temos que fazer um consórcio dessas empresas de estado. Ela e a nossa YPFB têm que fazer uma aliança estratégica, de médio e longo prazo, pra resolver nossos problemas nacionais e, em seguida, o tema regional.
- Mas o senhor acha que a Petrobras e o Ministério de Minas e Energia podem gostar da idéia de serem taxados em 50% e terem seus ativos recomprados à força na nacionalização que o MAS propõe? –, pergunto. – Nenhuma empresa gostaria disso, não?
- Conversei a respeito disso e eles estão dispostos a aceitar as novas regras. Quando assinaram os contratos? Quando o barril de petróleo custava US$ 18, US$ 19 (está em US$ 60 hoje). Eu compreendo a posição deles perfeitamente. Mas vamos negociar as plantas de Cochabamba, e devolvê-las ao Estado boliviano. Esse tema é incontornável. Não estamos falando de confiscar, de expropriar. Renegociaremos e o Estado recomprará tudo por preços realistas.
No primeiro semestre, contudo, houve tensão na Bolívia quando a empresa brasileira anunciou que estava reconsiderando seus investimentos no país. Dois ministros bolivianos chegaram a correr para Brasília levando panos quentes. Morales passa por cima disso e afirma que o Brasil precisa do gás boliviano da mesma forma que a Bolívia precisa da tecnologia brasileira. "Será gás por tecnologia", vaticina. Não só tecnologia de exploração e produção de gás e petróleo, mas também para outros campos como a agricultura, que Morales quer mecanizar. "Vamos mecanizar e subvencionar, principalmente os pequenos e médios", diz ele, mais para o gravador que para mim.
Morales parece cheio de grandes visões. De que o gás vai financiar o salto boliviano. De que os índios do país ainda precisam se libertar. De que o país tem adversários poderosos que tramam um golpe diuturnamente. Talvez seja isso que mais o aproxime de Hugo Chávez, Fidel Castro, até Bolívar: a noção de que seu país é uma potência que só não desabrocha por que inimigos que temem seu verdadeiro valor não deixam.
Difícil evitar os paralelos com o Lula de três anos atrás. Morales é um líder popular, um símbolo antes de qualquer coisa, o índio que chega ao poder no país dos colonizadores à maneira do operário que chegou ao poder aqui, no paraíso dos patrões. Se Morales não vestiu um terno azul marinho, foi apenas porque isso provavelmente seria a senha de sua derrota. A Bolívia, em 2005, é o país da autenticidade milimetricamente controlada. Que sabe quando xingar e quando soar razoável.
– Olha, eu em uma época da minha vida política generalizava os oligarcas. Eram todos maus para mim. Hoje já não acho isso. Nem todos são maus. Há empresários produtivos, apolíticos, empresários democráticos e não facistas. E com esses eu converso. Semana passada me deram uma linda festa em Santa Cruz, um banquete. Rainhas da beleza de lá, e até ex-rainhas, tiraram fotos comigo. E sabe por que? Todos estavam mobilizados pelo tema da pobreza. De que eu venho dos pobres e trago o tema da pobreza. Me deram todo o apoio para o que quero fazer.
Não por acaso, Morales disse meses atrás que considerava Lula "um irmão mais velho". Falo do sentimento geral de decepção no Brasil e da acusação de que o PT chegou ao poder sem projeto ou quadros suficientes para executá-lo. É algo que dizem a respeito do próprio MAS aqui, e menciono isso. Morales parece um pouco ofendido com a insinuação. Sua expressão é a de quem tem azia. Desgosto e asco controlados. Parece francamente decepcionado.
- De cabeça quente eu pensaria que você é um agente de inteligência da direita dos Estados Unidos, - retruca ele, num sorriso atravessado.
Subitamente, fica monossilábico, se desinteressa da entrevista. Mais dois minutos e diz que temos que terminar. Deixa a mesa onde estávamos, senta-se numa poltrona do outro lado da sala e começa a abrir um jornal sobre a mesa de centro. Depois de checar o gravador, caminho até a porta próxima a ele e me despeço.
- Adiós, - diz, sem tirar os olhos das manchetes.
17.11.05
A um metro de Evo Morales
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