30.6.08

Mulheres de atos

Às vésperas de completar mil anos com uma população estritamente masculina, quatro moças chegam ilegalmente à península de Santo Atanásio



(Publicada orginalmente na Piauí 22. A versão orgininal, mais extensa e apimentada, pode ser lida aqui)

Pouco depois da separação formal entre a Igreja Católica Romana e a Cristã Ortodoxa, o governo bizantino em Constantinopla determinou, em 1060, que a península - salpicada por diversos mosteiros cristãos - onde se levanta o Monte Atos, na Grécia, fosse livrada de todas as fêmeas, a começar pelas da espécie humana.

A partir daquele ano, os mais de 30 mil hectares daquela terra verdejante foram consagrados à louvação da Virgem Maria. Nenhuma fêmea deveria competir com a mãe de Deus, segundo o decreto do imperador Constantino Monomachos.

Fosse lavadeira ou esposa de pescador, fosse égua, vaca, cadela ou cabra, foram expulsas da península. Como o decreto ainda vige, de feminino, lá, resta apenas a suposta mão direita de Maria Madalena, algumas gatas para conter a população de ratos (de ambos os sexos), passarinhas (por desobedientes) e galinhas (porque a gema de seus ovos é necessária na pintura de ícones - ou seria difícil demais identificar o sexo de cada pinto?).

Foi nesse cenário varonil que desembarcaram, no último sábado de maio, cinco imigrantes ilegais da Moldávia. Eram um homem de 41 anos e quatro mulheres na faixa dos 20. Como a península fica na União Européia, buscavam oportunidades, emprego, direitos.

Em três dias, haviam percorrido 900 quilômetros.

Primeiro, foram por terra até a Ucrânia. Depois, pagaram quatro mil euros a atravessadores que, pelo estreito de Bósforo, os levaram do mar Negro ao de Mármara. Ali, cruzaram o mar Egeu nos Dardanelos e, finalmente, chegaram à península do Atos.

Foram encontrados nos arredores do atracadouro do mosteiro Megisti Laura, o mais antigo e maior dos vinte da península, construído a partir do ano de 958 por Santo Atanásio, o atônita, que morreu octogenário quando um tijolo lhe caiu na cabeça. Eles se esconderam numa praia pedregosa para evitarem denúncias e deixaram para o dia seguinte a decisão do que fazer. Num outro lugar, não seria complicado se misturar à multidão. Não é o caso do Estado Monástico da Montanha Sagrada, designação oficial da península, que é habitada por pouco mais de dois mil monges de longas barbas e batas negras. No dia seguinte, duas das moças foram avistadas por monges, que avisaram o inspetor de polícia da cidade vizinha de Tessalônica, Stergios Apostolidis.

Não era a primeira vez que mulheres entravam no bastião ortodoxo. A península recebeu centenas de refugiados gregos de ambos os sexos quando de uma revolta, em 1770, e novamente meio século depois, durante a guerra de independência. Todas foram expulsas assim que o perigo passou. No século passado, suas praias também foram visitadas por Aliki Diplarakou. Metida num hábito de monge, a Miss Europa 1930 (perdeu nas finais do Miss Universo, realizadas no Rio de Janeiro) passeou discretamente pelos mosteiros sem que ninguém percebesse sua beleza de 18 anos.

Submetidos apenas ao ministério das Relações Exteriores grego, o estado monástico é extremamente cioso de seus costumes e domínios. Monges e governo, em toda a Grécia, vivem às turras, já que a Igreja Ortodoxa é a maior proprietária de terras do país. Os moradores de Skyros, por exemplo, estão em pé de guerra com a congregação do Megisti Laura por conta de um projeto milionário que prevê a implantação de mais de cem ruidosas turbinas de energia eólica na pequena e preservada ilha. Na própria península de Atos, houve escaramuças no início do ano, quando 500 moradores do balneário de Halkidiki, seis deles mulheres, entraram em atrito com a polícia. Numa manifestação, eles alegavam que os monges estariam a empurrar a fronteira da península para dentro de suas terras.

Assim como as guerras, os costumes e o ambientalismo, também a questão migratória chegou para perturbar a rotina de reza e expiação do enclave.

Todos os dias, cerca de 1 400 imigrantes entram ilegalmente na União Européia. Países do Mediterrâneo - Espanha, França, Itália e Grécia, principalmente - são os mais visados. Na outra ponta da equação há nações africanas, asiáticas e do Oriente Médio. Mas também vizinhos europeus com a economia em frangalhos.

Nos anos soviéticos, a Moldávia se tornou uma economia de médio porte, com uma boa produção de alimentos e um razoável distrito industrial, o de Transnistria. O regime sovié-tico começou a ser desmantelado em 1989, e dois anos depois o governo moldávio em Chisinau proclamou independência em relação a Moscou.

Em alguns dias, Transnistria deu vazão a aspirações nacionalistas e se separou da Moldávia, levando com ele todas as indústrias (boa parte produzia rifles Kalashnikov) e suas receitas. Orgulhosamente independente, sem saída para o mar e incapaz sequer de produzir parafusos e dobradiças, a Moldávia se tornou um dos países mais pobres da Europa.

Hoje, seu maior produto de exportação é gente. Homens fortes para consertar banheiros na França e lavrar campos na Bélgica, mulheres bonitas para atender pedidos em bares da Itália, dançar nuas na Espanha e se prostituir na Rússia, Kosovo, China e nos Emirados Árabes.

O grupo que chegou à ilha dos monges está longe de ser uma exceção. Um quarto da população economicamente ativa não mora na Moldávia. A maioria dos que saem é de mulheres - e pelo menos 25% delas deixaram filho para trás. Não é improvável, portanto, que o destino das quatro jovens encontradas em Atos fosse, ainda que não soubessem, um prostíbulo.

Elas estão na "idade de corte", no linguajar das máfias que fazem tráfico de prostitutas. Fazem parte de uma população de aproximadamente 150 mil jovens que organizações humanitárias acompanham, para evitar a prostituição forçada e os abusos físicos e psicológicos.

A Constituição grega traz duas provisões para as mulheres de Atos. A primeira determina que imigrantes ilegais devem ser detidos por quarenta dias, e em seguida deportados para seus países de origem. A segunda diz que mulheres que violarem a segregação do Estado Monástico da Montanha Sagrada serão punidas com até dois anos de detenção. Mas pelo menos desse último pecado, os monges que as encontraram decidiram perdoá-las.

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